Um novo ano de infelicidades
José Carlos de Assis, economista, professor, autor de dezenas de livros, membro do Conselho Editorial do <a href="https://monitormercantil.com.b
José Carlos de Assis, economista, professor, autor de dezenas de livros, membro do Conselho Editorial do Monitor Mercantil, escreveu, em 1984, livro de denúncias e de análise do Brasil num período dos governos militares, Os Mandarins da República (Anatomia dos escândalos na Administração pública: 1968–84) (Editora Paz e Terra, RJ, 1984).
Neste livro, minucioso e cuidadoso nos dados, nas análises e na identificação dos envolvidos, Assis coloca, como um tabuleiro de sustentação das desditas, a estrutura orgânica do Estado brasileiro.
Este tema, a construção do Estado Nacional, tem sido objeto de diversos artigos que, com o brilhante doutorando Felipe Maruf Quintas, temos oferecido ao debate nas páginas democráticas do Monitor Mercantil.
Qual a principal e lastimável constatação? Que temos, desde a Carta Régia trazida por Tome de Souza para instalar o governo geral na colônia brasileira (1549), a mesma estrutura de organização colonial, apenas alterada pelas condições da evolução da sociedade e das demandas da economia. Mudaram os colonizadores, mas a estrutura permaneceu.
Fazendo justiça a presidentes e à nossa história, houve dois momentos de tentativa de estruturar diferentemente o Brasil.
O primeiro veio no bojo de uma revolução onde, além da política partidária e das forças armadas, também o povo participou. E foi este apoio popular que deu força ao nosso maior estadista, Getúlio Dornelles Vargas, para criar organismos na estrutura então vigente que levassem a áreas, até então ignoradas pelo Estado, a sua indispensável ação. E, igualmente importante, que o povo tivesse estruturas para sua representação na atividade cotidiana do Estado, como a criação de sindicatos classistas.
A segunda, também culminada em golpe de estado, devemos a João Goulart e seu projeto de reformas de base.
Pode algum ingênuo e mal informado dizer que era a indevida intromissão do Estado na vida particular. Duas considerações. A primeira de natureza histórica, a segunda de ordem sociológica e política.
Os Estados Unidos da América (EUA), nossos feitores desde a II Grande Guerra e, atualmente, como representantes no Brasil do Sistema Financeiro Internacional (SFI), constituíram sua forte e agressiva nação com a mão condutora e generosa do Estado. Não é uma opinião. É a história dos EUA quem nos informa.
Acaso se desconhecem os "barões ladrões" (robber barons), as pessoas que eram os mais ricos e poderosos estadunidenses ao final do século 19/início do 20?
O que significava o epíteto? Que eram criminosos – ladrões – enriquecidos por origem ilegítima – barões – pois a república não reconhecia tal honorabilidade. Realmente, foi se apropriando do Estado, exercendo influência nas decisões, controlando recursos de toda natureza, eliminando concorrentes, exercendo verdadeiros monopólios, inclusive iludindo impunemente a boa fé e ingenuidade da população, que pessoas como John D. Rockefeller, J.P. Morgan, Cornelius Vanderbilt, Andrew Carnegie, John Jacob Astor, Henry Ford, Andrew William Mellon, entre outros, acumularam suas imensas fortunas familiares.
E estas pessoas não encontraram dificuldades em governantes como: Van Buren, o escravagista 8º presidente, que se apropriou de terras indígenas; William Henry Harrison, retirando territórios das tribos nativas que lhe valeu, pelo historiador da Universidade de Kentucky, William W. Freehling, a designação de "a figura mais dominante na evolução dos territórios do noroeste para o Alto Meio-Oeste" estadunidense; Zachary Taylor, militar como Harrison, mas que se dirigiu para as terras ao sul, ao longo do rio Mississippi e o Texas; Franklin Pierce, cuja gestão beneficiou políticos do seu Partido Democrata com apoios materiais e patrocínios, entre outros presidentes anteriores à Guerra da Secessão.
Após Lincoln e Ulysses Grant, este último com ações controvertidas, o benefício saiu da ampliação e ganhos territoriais para os novos negócios.
Vejamos Rutherford Hayes, advogado que perdeu a eleição no voto mas conquistou os delegados, o "presidente do tapetão". Reprimiu movimentos operários, interferiu na circulação da moeda e reorganizou o Estado, obviamente desgastado com a guerra civil.
Grover Cleveland, um Democrata com coração Republicano, pois seu projeto era do conservadorismo fiscal, do padrão-ouro, vetou projetos de lei para pensões aos veteranos da Guerra de Secessão e nomeou Daniel Manning, para secretário do Tesouro, em plena disputa entre o ouro e a prata como resgatáveis pelas cédulas de dólar.
O que nos parece mais característico em Grover Cleveland é a contradição entre o discurso e a ação. Como Bolsonaro, que está vendendo os ativos brasileiros como em xepa de feira enquanto grita "Brasil acima de tudo"!
São alguns dos dados históricos que demonstram que a "pujança privada" estadunidense não veio da competitividade, mas do firme e seguro apoio estatal. Este apoio ora se materializava em legislações permissivas, ora em privilégios dirigidos a pessoas ou grupos, ora com financiamentos generosos, e, inclusive, com ações executivas do Estado conquistando terras, construindo infraestruturas de energia, de comunicação e de transporte.
A Constituição dos EUA, com suas dez emendas e as cláusulas e direitos a ela incorporados, longe de abrirem o Estado à participação popular, o engessa na fórmula dos "pais fundadores" para manter um princípio de poder.
David Fellman (1907–2003), constitucionalista estadunidense, em "A Nacionalização das Liberdades Civis Americanas" (in M. Judd Harmon, editor, Ensaios sobre a Constituição dos Estados Unidos, Forense, RJ, 1978), esclarece que "o fato mais elementar da Constituição americana é o de que ela garante um sistema federal de governo". E esclarece que há a rigidez no "princípio nacional", que se exerce inclusive por órgãos descentralizados, "estaduais", que impede alteração, salvo se houver os dificílimos "dois terços de membros do Congresso e três quartos dos Estados federados".
É este sistema nacional que mantém uma estrutura de poder independente das manifestações eleitorais. O caso do Banco Central privado, que já levou à morte dois presidentes eleitos, é bem um exemplo.
Portanto caros leitores, deixemos de repetir, ingênua e ignorantemente, que é o mercado quem decide. Não!, é um sistema que está acima do jogo político-eleitoral e que mantém o Estado voltado para o interesse de particulares, de um poder que a ele se sobrepõe, como hoje ocorre no Brasil e nos EUA: o Sistema Financeiro Internacional, apátrida e refugiado nos 85 paraísos fiscais espalhados pelo Planeta.
Voltemos a Os Mandarins da República, e leiamos J. C. de Assis: "Comparada com o Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI), cuja estrutura técnica herdara dos antigos grupos executivos de planejamento setorial e por isso dotado de capacidade consolidada na análise de projetos industriais, a Befiex era uma agência inexperiente, pouco preparada para a avaliação de complexos industriais sofisticados. Condicionada à ótica do saldo comercial, não tinha elementos para perceber o efeito interno do polo proposto pela Dow Chemical".
Em outras palavras, se estabelecia o monopólio estrangeiro em importante setor da petroquímica no Brasil. E isto ocorria apesar da orientação do presidente da República, Ernesto Geisel, conhecedor da área do petróleo e da petroquímica, e de diversos auxiliares, em funções executivas, que comungavam do mesmo espírito nacionalista.
E usando a estrutura colonial do Estado, a empresa estrangeira corrompeu alguns maus brasileiros que trocaram sua Pátria por trinta dinheiros, como o General Golbery do Couto e Silva, personagem do livro do professor Assis.
Cabe então a pergunta: qual a força desta estrutura que dura 500 anos e resiste a mudanças, até com aplicação de golpes de Estado como em 1945, 1954, 1964 e 2016?
O genial analista do Brasil, Manuel Bonfim (1868–1932) responde com uma palavra: o parasitismo. Aqui no Brasil e em boa parte da América espanhola, a estrutura da sociedade colonial ensejou e fortaleceu uma classe parasitária que também se fez representante local das colonizadoras, mesmo quando aqui trocamos Portugal pela Inglaterra, depois pelos EUA e agora pelas finanças apátridas.
Assim se expressa Manuel Bonfim em relação a estas colonizações ibéricas: "Se estabelece um regime político-administrativo não só antagônico como ativamente infenso aos interesses das colônias; regime que só tinha um programa – empobrecê-las – e um pensamento exclusivo – obstar que elas progredissem e pudessem organizar-se como nações emancipadas". "Era o sistema da metrópole, desnaturado o preciso para ser adaptado ao programa parasitário" (M. Bonfim, A América Latina Males de Origem, Topbooks, RJ, 2005, Edição do Centenário).
Esta organização adequada ao regime parasitário irá constituir a sociedade cuja descrição do mestre Manoel Bonfim caberia perfeitamente no Brasil bolsonarista de hoje.
"O primeiro efeito desses processos de exploração, desenvolvidos pela metrópole, foi preparar uma população heterogênea, instável, cindida em grupos, possuídos de ódios entre si, formada quase que de castas distintas", em nada diferente da sociedade neopentecostal financeira neoliberal.
E prossegue Bonfim, após descrever a sociedade rural, nesta mesma obra já citada: "Nas cidades, a instabilidade ainda é mais acentuada. Ali se encontravam: as autoridades – o fisco, a tropa, tudo estrangeiro e hostil à colônia, todos ansiosos de enriquecer e ver chegar o dia de voltar; os comerciantes, intermediários, representantes de privilégios, monopólios, tão ligados a eles, à metrópole, como os próprios funcionários, tão hostis à população nativa como os outros, tão instáveis e passageiros como os enviados diretos da coroa".
Porém todo este desconcerto altamente prejudicial à colônia, à formação da nação, será sepultado da compreensão, e mesmo do conhecimento, da população por outras questões, tais como a corrupção, a violência e mesmo as diversões e festas. Este será também um papel das mídias.
A sociedade que surge deste sistema organizacional escravizante, que ignora a humanidade em favor da ganância, que privilegia o ter, aplica as fraudes narradas por Assis no "caso" Dow Química, independente mesmo das decisões hierárquicas.
Delcio Monteiro de Lima, de cuja obra o acadêmico e ministro Antônio Houaiss afirmou (10 de agosto de 1992) descrever empresários "herdeiros dos monopólios coloniais" que "conseguem fazer deste país o padrão mais sociopatológico do mundo em concentração da riqueza" narrou o seguinte caso: "A mentalidade patronal brasileira, pelo menos da maioria, parece indiferente às críticas de falta de consciência humana e social. Não evolui, não atualiza o pensamento com a dinâmica da época, como recentemente, em 1991, demonstrou o Sindicato dos Lojistas de Porto Alegre, ao orientar os comerciantes da cidade a não obedecerem a lei municipal aprovada pela Câmara dos Vereadores, que determinava a obrigatoriedade de as empresas oferecerem café da manhã aos seus funcionários".
Comenta Delcio Lima: "Uma atitude mesquinha, por tão pouca coisa. Apenas café e pão com manteiga para operários que trabalhariam o dia inteiro produzindo lucros para os patrões" (Delcio M. de Lima, Os sobrinhos de Judas, Livraria Francisco Alves Editora, RJ, 1992).
E chegamos à sociedade do Uber, onde se trabalha sem direito, sem proteção social, sem garantia alguma que possa acreditar no dia de amanhã. A sociedade movida pela falsa competição, pelo arbítrio, pelo egoísmo parasitário.
Encerro este artigo com um evento ocorrido neste dezembro. Fora alienada, em 30/11/2021, a primeira refinaria do Brasil, a Refinaria Landulfo Alves Mataripe, com o argumento de aumentar a competitividade do setor ("monopolizado pela Petrobrás", embora aberto a qualquer empresa, desde 1997, que desejasse investir neste segmento no Brasil) e, supostamente, para reduzir preços e melhorar os produtos, para Acelen.
A adquirente Acelen fora criada pelo fundo financeiro Mubadala, do herdeiro do emirado árabe de Abu Dhabi, e afirmou que não iria beneficiar seus consumidores com a redução do preço da gasolina, em 3%, a partir de quarta-feira, dia 15/12, decidido pela Petrobrás para todas suas refinarias.
Tão ridícula e estapafúrdia aquela decisão, contrariando a razão da própria venda para a Acelen, que esta foi obrigada a anunciar, um dia depois, 17/12, que iria reduzir o preço do litro de gasolina a partir do sábado, dia 18 de dezembro.
Não se trata apenas dos maus governantes, e os temos péssimos, nem da corrupção, que sempre acompanha as finanças onde quer que ela vá, da Santa Sé à aldeia indígena do Alto Rio Purus, mas de uma estrutura de Estado organizada para a rapina e para a segregação social, para benefício do estrangeiro em detrimento do nacional.
De quem depende um Ano Novo cheio de felicidade?
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil
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