Apropriação de terras por estrangeiros ocorre de forma sutil, dizem especialistas
Aquisição descontrolada piora concentração fundiária - 1% dos proprietários já detêm 46% das terras.
Estrangeiros exercem controle sobre terras e propriedades brasileiras de formas sutis, muitas vezes não contabilizadas, e consequentemente sem fiscalização. Este foi um ponto debatido nesta terça-feira (30/9) durante as palestras do primeiro painel do segundo dia do Simpósio Internacional sobre Propriedade e Estrangeiros, que ocorreu na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
A mesa, batizada de “Estrangeirização e land grabbing“, foi moderada por José Fernando Simão, professor de Direito Civil da USP.
O advogado Ney Strozake, coordenador no Setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), contextualizou a apropriação de terras por empresas estrangeiras como uma forma “mais sutil” e “mais jurídica” de ocupação. Ele destacou que essas empresas não têm interesse em produzir alimentos para o mercado interno brasileiro, mas sim em produzir commodities (soja, algodão, celulose) para exportação. Enquanto isso, as comunidades locais ficam na miséria, sem serviços essenciais.
Strozake lembrou que controlar o uso e a ocupação do solo é uma obrigação do Estado, já que a Constituição prevê a soberania nacional e a função social da propriedade. Para ele, a apropriação de terras por empresas estrangeiras sem fiscalização representa uma falha governamental e uma ameaça à segurança nacional e alimentar.
Essa aquisição descontrolada também piora a concentração fundiária no Brasil, país em que 1% dos proprietários já detêm 46% das terras. “Empresas vêm para cá, expulsam os camponeses, indígenas e quilombolas e vão se apropriando dessas terras para explorá-las (para a exportação, sempre) ou vendê-las logo depois”, disse.
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Diante dessa situação, o advogado propôs a criação de um consórcio entre universidades e associações com o objetivo de pesquisar o tema, fazer seminários e, principalmente, pressionar o governo federal para que a legislação seja cumprida e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) receba o orçamento necessário.
Controle subestimado
O economista e sociólogo Sérgio Pereira Leite, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), apontou que os dados oficiais do Incra subestimam o controle estrangeiro sobre terras brasileiras. O capital externo utiliza formas de controle mais sutis, que acabam não subordinadas a uma legislação mais rigorosa pois a apropriação nem sempre é classificada como propriedade estrangeira direta.
Um exemplo disso é a participação de estrangeiros em fundos de investimento. O próprio Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro) permite a participação de investidores estrangeiros sem uma identificação clara de quem são. Isso não entra nas estatísticas oficiais. Há também a criação de empresas subsidiárias nacionais e outras estruturas societárias complexas.
De acordo com Leite, o número de fundos de investimento internacionais especializados em terras e recursos naturais cresceu de forma excepcional: passou de 43 em 2005 para 960 em 2023. O Brasil é um dos principais destinos desses investimentos.
“O que está por trás disso é a ideia de controle e não necessariamente de aquisição ou propriedade. No caso brasileiro, a maior parte das áreas controladas por estrangeiros não são de propriedade de empresas estrangeiras, tal como define a Constituição”, afirmou.
Uma pesquisa, da qual o economista participou, identificou 224 empresas internacionais controlando terras no Brasil, com origem principalmente em países como EUA, Portugal, Japão e Canadá.
Os investidores vão desde fundos de pensão e fundos de doação de universidades até empresas do agronegócio, do setor financeiro e de mineração. A Universidade Harvard e o fundo de pensão dos professores universitários dos EUA (conhecido pela sigla TIAA), por exemplo, operam no Brasil por meio de empresas com nomes nacionais, que não aparecem como estrangeiras para o Incra.
Leite ressaltou que a chegada desse capital muitas vezes provoca o deslocamento forçado de camponeses e populações originárias. Isso ocorreu, por exemplo, em São Raimundo Nonato (PI), com parte das terras ocupada pelo TIAA; e em Cotegipe (BA), ocupada por Harvard.
A entrada dessas empresas estrangeiras aumenta o preço da terra de forma expressiva, muito acima da inflação. Em Luís Eduardo Magalhães (BA), por exemplo, a valorização foi de 600% entre 2001 e 2020, período em que a inflação foi de 230%.
O professor defendeu uma melhora urgente na capacidade de monitoramento do Estado sobre seu próprio território. Isso passa por um fortalecimento do Incra, que hoje tem uma estrutura insuficiente para lidar com esse fenômeno.
Nova regulação
Assim como os palestrantes do primeiro dia de evento, a advogada Mônica Sapucaia Machado, professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, defendeu a necessidade de novas regulações que garantam a proteção e a soberania fundiária do Brasil, sem impedir o desenvolvimento.
“Esse debate é muito mais do que uma discussão agrária”, disse. “Ele está inserido em um discurso sobre desenvolvimento, democracia e descolonização na América Latina contemporânea”.
Machado destacou a desigualdade de gênero na posse da terra. Ela apontou que as mulheres são donas de apenas 1% das terras no mundo, embora representem cerca de 40% da força de trabalho agrícola mundial.
“Esse é um recorte necessário nessa discussão, porque as mulheres serão cada vez mais retiradas dos seus postos de trabalho e não terão nenhuma legitimidade nesse debate sem esse lugar de donas”, assinalou.
Adriana Espíndola Corrêa, professora de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ressaltou que o modelo moderno de propriedade no Brasil “vem marcado por uma série de contradições”, pois historicamente ignora a presença de comunidades e povos originários, com diferentes modos de ocupação de terras.
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