Governo quer antecipar entrega de petróleo para enxugar gelo na dívida pública
Antecipação de receitas pode liberar R$ 37 bilhões até 2026 para o serviço de uma dívida que só cresce

Sob a justificativa de garantir a “consolidação fiscal em curso”, o Ministério da Fazenda encaminhou ao Congresso o projeto de lei 2632/25, que autoriza a União a vender antecipadamente seus direitos sobre a produção futura de petróleo não apenas do pré-sal, mas também em outras áreas estratégicas. A iniciativa decorre da incapacidade política para elevar a taxação do IOF sobre os rentistas.
De acordo com o jornal Valor Econômico, entre 2025 e 2026 a antecipação de receitas pode liberar até R$ 37 bilhões para o serviço da dívida pública, que ano passado consumiu cerca de R$ 1 trilhão do Orçamento Federal e, apesar disso, continua crescendo.
“Art. 1º Fica a União autorizada a alienar seus direitos
e obrigações decorrentes da celebração de acordos
de individualização da produção em áreas
não concedidas ou não partilhadas na área do
pré-sal e em áreas estratégicas, de que trata
o art. 36 da Lei nº 12.351, de 22 de dezembro de 2010,
mediante licitação na modalidade leilão.
§ 4º Realizada a transferência de direitos e obrigações,
a União não poderá conceder ou contratar a exploração
e a produção da sua parcela de participação
na jazida compartilhada durante a
vigência dos acordos de individualização da produção.”
Entrega total
Segundo a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli, significa que a União abrirá mão de explorar petróleo em áreas não concedidas e, enquanto durar a concessão, não terá direito de fazer sua própria exploração em jazidas, pertences ao povo brasileiro.
[caption id="attachment_19830" align="alignnone" width="1024"] Fattorelli: “Sistema da dívida é sanguessuga do patrimônio nacional” Foto Agência Brasil[/caption]
“É a entrega total das nossas riquezas para pagar juros sobre uma dívida pública repleta de mecanismos levianos, um verdadeiro programa ‘bolsa banqueiro’. E mais: pagamento em parcela única, ou seja, além da venda antecipada, tudo que a empresa compradora explorar depois é dela e a União não receberá mais nada”, denuncia.
Maria Lúcia volta a alertar sobre a existência de um “sistema da dívida”, que acaba por justificar a privataria. “Pra isso tem servido o sistema da dívida. Enquanto ele não for enfrentado seguiremos submetidos a esta contínua entrega de patrimônio público e direitos sociais, aviltando a nossa soberania e sacrificando cada vez mais o povo”, afirma, lamentando que não exista vontade política para uma auditoria.
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EMI nº 00021/2025 MME MF
Brasília, 14 de Abril de 2025
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
- Submetemos à sua apreciação proposta de Projeto de Lei que visa autorizar a União a alienar, de forma integral, sua parcela de excedente em óleo proveniente de acordos de individualização da produção em áreas não contratadas no Pré-Sal ou em áreas estratégicas
...
- A arrecadação será obtida por meio de pagamento em parcela única no
ato da assinatura do contrato, sendo que a União não assume riscos decorrentes
da celebração de contrato de alienação do óleo, não cabendo
ao comprador, em qualquer hipótese, alguma forma de ressarcimento
... - A urgência e a relevância da medida decorrem da necessidade
de criar alternativa de comercialização do óleo destinado à União
que esteja alinhada à consolidação fiscal em curso, mitigando incertezas
sobre a efetiva destinação do óleo para as finalidades previstas
na Lei nº 12.351, de 22 de dezembro de 2010
...
Assinado eletronicamente por: Alexandre Silveira de Oliveira, Fernando Haddad”
Crime
Estrella: “Exportar petróleo compromete futuro do país”
Já o geólogo Guilherme Estrella, diretor de Produção e Exploração da Petrobrás no período em que o pré-sal foi descoberto, classifica o PL do governo como “um crime que compromete o futuro do país”. De acordo com Estrella, o Brasil precisa dobrar sua produção atual, de 5 milhões de barris boe por dia para se aproximar do consumo de energia dos países desenvolvidos e sustentar um projeto de desenvolvimento. “No entanto, já estamos exportando 1,5 milhão de barris sem valor agregado e praticando preços internacionais internamente, elevando custos de produção e destruindo a competitividade de nossa indústria. Agora surge essa ideia de vender antecipadamente o petróleo da União, agravando o problema”.
Privatizar para enxugar gelo
Por sua vez, Gilberto Bercovici, professor de Direito Econômico e Economia Política da USP, afirma que os governos de plantão se veem obrigados utilizar “gambiarras” para seguir explorando de maneira predatória os recursos naturais do país e “tapar os buracos” da dívida. “Para tanto, se submetem planos como o chamado arcabouço fiscal.”
Ponderando que as reservas do pré-sal já dão sinais de esgotamento, Bercovici observa que a mudança de gestão em Brasília não acabou com absurdo pagamento de dividendos na Petrobrás, que obriga a empresa a entregar petróleo de maneira acelerada, enquanto o governo “enxuga gelo” para cumprir o orçamento da dívida. “Não existe política de longo prazo. Além disso, o PL 2632/25 autoriza o pagamento em petróleo, a partir de uma produção que não é mais controlada pela Petrobrás devido a sucessivas alterações na legislação”.
Bercovici: “Governo reforça modelo primário-exportador”
Por esses motivos, o professor da USP vê com extrema cautela as parcerias criadas com a China. “O governo joga para a plateia enquanto nos tornamos fornecedores de petróleo, minerais raros, minério e soja para a China. Todas as parcerias são para viabilizar exportações, nada de ciência e tecnologia, diversificação da produção ou reindustrialização do país. Apenas infraestrutura para garantir o modelo primário exportador.”
Bercovici inclui nesta análise os acordos com os Estados Unidos e União Europeia. “Nenhuma possibilidade de se construir uma base industrial para melhorar nossa participação na economia mundial. Vendem tudo para garantir recursos de curto prazo, comprometendo o futuro. E a dívida pública é usada para isso. O arcabouço fiscal legitima a lógica do ajuste, como ocorre nas privatizações”, resume.
Mercado teme pelos dividendos
Na matéria intitulada “Governo mira petróleo e nova conta pode custar caro à Petrobrás”, o site InfoMoney mostra preocupação dos especuladores quanto à capacidade da estatal seguir pagando dividendos recordes caso o PL do governo seja aprovado. Alertando para o “risco regulatório” e pressão sobre o fluxo de caixa da empresa, os analistas pró-mercado temem a abertura de uma “nova frente de incertezas” devido à alteração nas regras vigentes, estando a Petrobrás entre as mais sensíveis.
“A XP estima que, caso as mudanças sejam implementadas, a Petrobrás teria uma redução de cerca de dois pontos percentuais no rendimento do fluxo de caixa livre para acionistas (FCFE)”, diz a matéria. Para o mercado, o aumento da carga tributária e a eventual queda na cotação do petróleo pode reduzir a expectativa de receita para apenas R$ 11 bilhões, prejudicando a competitividade das empresas exploradoras de petróleo sem garantir impacto relevante na gestão da dívida pública.
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