‘Não adianta culpar mudanças climáticas’

Para especialista, 'governos deixaram de fazer investimentos na prevenção'. Geólogo explica que amarras fiscais impedem obras.

Publicado em 08/05/2024
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“Não podemos jogar a culpa em fenômenos climáticos ou no aquecimento global, dizendo que se tornou uma catástrofe imprevisível. Não. É previsível”, afirma o especialista em Direito Ambiental, Alessandro Azzoni.

Para o advogado, fenômenos ambientais como as chuvas que assolam o Rio Grande do Sul são recorrentes e se tornaram pretexto para falta de investimento: “Não adianta agora jogar a culpa para o fenômeno da natureza se houve falta de investimento, de prevenção, de projetos mais eficazes e de acompanhamento”.

O advogado aponta para a série histórica e destaca que o saneamento leva em consideração as curvas de níveis, os dados históricos e os períodos de chuvas para estimar a capacidade de água em um reservatório. No setor elétrico, usa-se outro sistema de controle dos reservatórios das hidrelétricas.

“Se você leva em consideração que é uma série histórica de, pelo menos, 10 anos e se tivemos ocorrências assim em 10 anos, significa que esses governos deixaram de fazer investimentos na parte de prevenção. Você vê que os investimentos são poucos. Só há o clamor no período da enchente, do deslizamento. Depois, as ações concretas acabam não ocorrendo.

Azzoni aponta para uma série de ações importantes como, por exemplo, o respeito ao Código Florestal:

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“Nós sabemos que o Código Florestal estabelece limites de construção em margens de rios, de 30, 50 ou até 100 m de distância da margem. Por que eu não posso ter uma casa ao lado Rio? Porque quando houver uma cheia, vai te atingir, vai te matar ou te deixar sem casa. Essas margens de matas ciliares são consideradas proteção ambiental, mas na verdade são proteção para o próprio ser humano”.

Outro problema apontado é a ineficiência de estado e municípios em ações preventivas como: criar sistemas de drenagem mais eficientes ou sistemas de captações de água para momentos de chuva; recuperar áreas desmatadas, principalmente nas matas ciliares; e tirar famílias de áreas de risco. “Quando remover as famílias, é preciso ainda fazer reflorestamento e recuperação dessas áreas para evitar que outras pessoas acabem invadindo novamente”.

Para o especialista, a questão deve ser resolvida com planejamento e investimento contínuo.

“Você consegue ver os dados estatisticamente. Uns anos você tem chuvas, outros não. Se fica um ano com chuvas e outros dois anos sem chuvas, então automaticamente o poder público pensa ‘como eu estou momento de seca, eu não preciso me preocupar’. E quando dá uma cheia e ocorrem esses fenômenos, quem paga é a população. Foi a falta de investimento que trouxe como resultado a morte dessas famílias.”

Amarra fiscal impede obras de infraestrutura necessárias

A extensão da tragédia no Rio Grande do Sul, com dois terços do estado severamente afetados pelas chuvas e enchentes mais intensas já registradas, “deve sinalizar aos brasileiros que o País não pode continuar sendo dirigido e administrado com certas ideologias e idiossincrasias obsoletas do século 20”, ressalta o geólogo Geraldo Luiz Lino.

“Não é preciso ser economista para perceber que as três instâncias da federação brasileira encontram-se manietadas por um sistema financeiro que há muito deixou de cumprir a sua função básica de apoiar os setores produtivos da economia. Da União à grande maioria dos municípios, todos estão enquadrados por draconianas restrições orçamentárias que os impedem de realizar obras de infraestrutura e atividades imprescindíveis para o bem comum e para proporcionar às próprias empresas privadas um ambiente de operações minimamente saudável e competitivo”, defendeu Lino em postagens no X-Twitter.

“A começar pela proposta do ‘Estado mínimo’, que supostamente deveria retrair-se ao máximo para dar iniciativa aos ‘mercados’ como instrumentos preferenciais do desenvolvimento da economia e da Nação. O seu corolário tem sido a conversão das dívidas públicas no negócio mais rentável da praça, cujo serviço compromete os orçamentos das três instâncias federativas e cria obstáculos quase intransponíveis para investimentos em infraestrutura e iniciativas de gestão territorial necessárias ao enfrentamento de desastres naturais e à mitigação dos seus efeitos”, explica o geólogo, que é coeditor do Solidariedade Iberoamericana MSIb.

Tragédia sem precedentes no campo

Entre as regiões mais atingidas no Rio Grande do Sul estão o Vale do Rio Pardo e o Vale do Taquari, no centro do estado. Miqueli Sturbelle Schiavon mora no município de Santa Cruz do Sul e está na direção estadual do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Ele relata que trabalhadores e famílias vivem uma tragédia sem precedentes no campo.

“Os agricultores que estavam nas margens dos rios Pardo, Taquari, Jacuí perderam casas, animais e máquinas. Outros ainda nem conseguem calcular as perdas, porque não conseguiram voltar para ver as propriedades. A chuva também prejudicou tanto as produções de subsistência, como aquelas voltadas para o mercado e a manutenção das famílias”, diz Miqueli. “Os agricultores das regiões mais altas sofrem com deslizamentos de terra e soterramentos de casas. Ainda não existem informações muito concretas sobre mortes na área rural. E boa parte das produções também foi levada pelas enxurradas”.

Enquanto lida com os estragos atuais, Miqueli também se preocupa com o futuro da região depois que as chuvas passarem.

“Essas famílias necessariamente vão precisar de um apoio muito grande dos governos federal, estadual e municipais para reestruturar as propriedades. Para compra animais e equipamentos. E também de apoio para manutenção das famílias com alimentação, água e luz por um período, porque perderam praticamente tudo”.

Enquanto essa ajuda não chega, a solidariedade entre vizinhos e outras formas de organização comunitária são fundamentais para minimizar os problemas. A Comissão Pastoral da Terra é uma das instituições que tem tido atuação decisiva em Santa Cruz do Sul. Maurício Queiroz trabalha na diocese local e é uma das lideranças da CPT. As dificuldades de locomoção e de comunicação têm dificultado que o trabalho seja ampliado para áreas próximas.

“Ainda não conseguimos visitar os agricultores que foram atingidos. Eu quase fiquei sem gasolina, porque os postos não têm combustível. Previsão era que chegasse hoje, mas não aconteceu. Estamos com dificuldades de locomoção e os acessos estão muito difíceis, com barro e outras obstruções nas estradas. É algo que a gente nunca tinha visto antes. A água chegou a lugares que nem imaginava que pudesse chegar. Os prejuízos são de todo tipo. Há impactos econômicos nos empreendimentos e no comércio em geral. Agricultores perderam casas, galpões, maquinário. E há a dor das famílias e das vítimas, que a gente vai entender melhor quando puder visita-las e ter uma dimensão melhor do que aconteceu”, conta Maurício.

Milhões necessários para reconstrução

Na Região Metropolitana de Porto Alegre, a realidade também é de isolamento e de destruição. Luiz Antônio Pasinato é membro da CPT local e tem tido muita dificuldade para se comunicar com agricultores e assentados.

“Tentei fazer contato com vários agricultores e eles não dão resposta. Certamente, estão enfrentando essa enchente e tentando salvar suas vidas. Porque roças e lavouras de hortifrutigranjeiros foram totalmente destruídas. Toda essa região aqui foi afetada. Muitas famílias e pequenos agricultores plantam verduras para comercializar nas feiras de Porto Alegre. A maioria que tinha plantações de inverno acabou perdendo tudo e está isolada por causa das estradas bloqueadas”, relata Luiz Antônio.

O que já se estima é que serão necessários milhões de reais para reconstruir a infraestrutura dos municípios atingidos. Mas Luiz Antônio entende que é preciso ir além e investir no planejamento para que desastres como esse não se repitam.

“Primeiro, precisamos trabalhar a conscientização das pessoas. Porque há muito negacionismo climático. A gente vai ter que enfrentar com sabedoria e inteligência os problemas. Proteger nosso meio ambiente é uma questão-chave. E precisamos discutir que modelo de agricultura queremos implantar, que não deprede os mananciais. Discutir uma política habitacional, principalmente para as cidades que estão nas beiras dos rios e para as famílias que vivem em áreas de risco. E a sociedade civil tem que ser incluída nos comitês de gerenciamento das bacias hidrográficas e nos debates ambientais”.

Tanto o Movimento dos Pequenos Agricultores quanto a Comissão Pastoral da Terra participam da campanha “Missão Sementes de Solidariedade: Emergência”, lançada em setembro de 2023, e reforçada com os temporais de maio. Elas pedem doações para ajudar aqueles que foram mais atingidos pelo desastre. Os valores podem ser destinados para a conta da Cáritas Brasileira, por meio do Pix: 33654419/0010-07 (CNPJ) ou depósito bancário. Conta corrente 55.450-2, agência 1248-3 (Banco do Brasil).

Com informações da Agência Brasil

Fonte(s) / Referência(s):

Jornalismo AEPET
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