Fundos estrangeiros avançam sobre a água no Brasil amparados por incentivos fiscais e crédito público. Um estudo do Centro Internacional de Pesquisa sobre Responsabilidade Corporativa e Tributária (Cictar) e do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente da Bahia (Sindae), divulgado nesta sexta-feira (12), mapeou que R$ 21,1 bilhões dos R$ 38,9 bilhões captados via debêntures incentivadas desde 2017 foram usados para pagar ou refinanciar outorgas de concessões, e não para obras.
Debêntures são títulos de dívida que empresas emitem para captar dinheiro de investidores e, em troca, pagam juros e devolvem o principal no vencimento. Ao menos cinco de cada 10 reais captados pelas empresas, por meio de títulos com incentivos públicos, não foram usados para melhorias do setor, mas para concentrar o controle do mercado.
“O incentivo virou motor de privatização”, resume a pesquisadora Livi Gerbase, do Cictar. O relatório registra que, a partir da Lei 14.801, de 2024, o benefício fiscal migrou do investidor para a empresa emissora, permitindo deduzir juros de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
A partir dessa alteração legal, a empresa que toma o dinheiro no mercado pode descontar parte dos juros do imposto; isso vale para emissões até 2030 e cobre gastos de até 5 anos atrás. Em outras palavras, se uma companhia emite um título em 2025, paga R$ 100 milhões/ano de juros e tem lucro, ela pode usar uma parte desses R$ 100 milhões para reduzir o IRPJ/CSLL a pagar.
O problema constatado pelo estudo O sequestro do financiamento do saneamento básico no Brasil é que o dinheiro captado não está sendo investido em melhorias no saneamento e abastecimento de água das cidades brasileiras. “O que a gente está mostrando é que isso tem sido utilizado para essas grandes empresas pagarem o valor das outorgas”, salienta Gerbase.
Enquanto isso, cada vez mais refém do mundo dos negócios, o país segue distante da universalização prometida pelo Marco Legal do Saneamento Básico, que completa 5 anos. Houve, em vez disso, retrocessos. O estudo Avanços do Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil de 2025, divulgado em agosto, mostrou que o acesso à água passou de 83,6% da população, em 2019, para 83,1%, em 2023 ─ uma queda de 0,5 ponto percentual. Já o tratamento de esgoto passou de 46,3% para 51,8%.
A meta instituída pelo Marco Legal continua sendo 99% de água e 90% de esgoto até 2033. “Não existe solução mágica”, diz Gerbase. “Saneamento precisa de financiamento volumoso e de longo prazo — e bancos públicos como BNDES e Caixa têm que voltar a puxar esse crédito.”
“No atual ritmo, só seria em 2070”, assinala a pesquisadora.
Para o dirigente Fernando Biron, do Sindae, trata-se de uma manobra com objetivo de “socializar o risco e privatizar o lucro”. Ele afirma que “as empresas pegam dinheiro público para comprar o que era público; quando a conta chega, vai para o consumidor e para o trabalhador”.
Biron defende um fundo nacional de saneamento e a liderança dos bancos públicos no crédito de longo prazo, e critica “PDVs [planos de demissão voluntária] pressionados, enxugamento de quadro e burnout” como efeitos recorrentes das privatizações.
“Se o governo quer universalizar, tem que blindar o incentivo contra uso em outorgas”, reforça Livi Gerbase.