Gilberto-Maringoni
Gilberto Maringoni
Jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro

Donald Trump, o mundo e adjacências

Como a desordem global virou estratégia para salvar o dólar — e o vazio estratégico do Brasil

Publicado em 14/05/2025
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No início de Política externa norteamericana e seus teóricos, Perry Anderson escreve: “Desde a Segunda Guerra Mundial, o ordenamento externo do poder norte-americano tem sido, em grande medida, mantido à parte do sistema político interno”. Em outras palavras, os objetivos mais gerais do Estado apresentariam forte autonomia em relação às políticas de governo, que são passageiras.

Se é certo que ao longo da Guerra Fria, os democratas se caracterizaram por uma brutalidade militar maior que a dos republicanos, havia balizas permanentes nas ações internacionais dos EUA. Essas eram, entre outras, o anticomunismo, a divisão do mundo em áreas de influência e a definição da URSS como inimiga principal. É possível dizer que a própria ordem liberal emanada do conflito de oito décadas atrás se tornou cláusula pétrea, acima dos partidos, na visão do Departamento de Estado.

Chutando o balde

Mas numa conjuntura em que a potência hegemônica se vê frente a um competidor à sua altura, a China, tudo muda. A partir de sua posse, em 20 de janeiro último, Donald Trump chutou o balde. Sua atuação frenética tem sido a de alterar os fundamentos da diplomacia imperial. Ou seja, questionar alianças tradicionais, redefinir aliados e inimigos e repactuar consensos internos.

O marco visível da reviravolta é a frenética guerra de tarifas, medida que sai do âmbito estritamente econômico e se torna arma de chantagem política. “Agora eu mando no país e no mundo”, afirmou o republicano à revista The Atlantic, em tom de blague no final de abril. A meta real é a manutenção da hegemonia do dólar como moeda de reserva planetária.

Aliás, é a mesma imposta na conferência de Bretton Woods, em 1944, quando representantes de 44 países tiveram de engolir a moeda estadunidense como unidade de troca internacional. A única concessão feita diante de 730 delegados presentes foi a de que o ouro seria o lastro metálico garantidor do dólar.

Duas décadas e meia depois, em 1971, diante da queda de dinamismo da economia dos EUA, o presidente Richard Nixon resolveu novamente colocar o mundo contra a parede. Em decisão unilateral, a Casa Branca rompeu a paridade ouro-dólar, gerando pânico nos mercados.

Agora, Donald Trump trava o terceiro contencioso mundial pela supremacia monetária, frente às ameaças chinesas de buscar um sistema de pagamentos em moeda digital para as transações internacionais. Trata-se de sinal claro de enfrentamento da hegemonia americana. Estrategicamente, a Casa Branca tem objetivos bem definidos, o que não ocorre no caso das tarifas.

Traçadas aparentemente sem planejamento – o que explica oscilações de taxas para produtos chineses que variaram de 45% a 145%, em menos de um mês – as porcentagens mostram hesitações na lógica de chantagear países visando forçá-los a sentar para negociar individualmente. Esboça-se aí um novo padrão de diplomacia, na qual saem de cena negociações multilaterais, no âmbito da ONU e de outros organismos, e adentra-se a um jogo de força em que a potência hegemônica tem total superioridade sobre quase todos os interlocutores. O único caso que deteve o ímpeto de Washington foi a China.

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O dólar e o Conselho de segurança da ONU

Embora a geopolítica construída no pós-Segunda Guerra congregue quase duas centenas de países na Assembleia-Geral da ONU, a constituição do Conselho de Segurança e do poder de veto de qualquer um dos membros permanentes resultou de imposição estadunidense.

O feito se deu na conferência de Dumbarton Oaks, um mês depois de selados os acordos de Bretton Woods, em 1944. Supremacia do dólar e Conselho de Segurança fazem parte de um único pacote de pressões que garantiria a constituição de um novo imperialismo. A ONU foi desenhada por Franklin Roosevelt (1933-45) quando a economia dos EUA correspondia a cerca de 40% do PIB global. Hoje esse percentual caiu para 26,5%.

Quando se avolumaram sinais de ameaça à soberania estadunidense Washington abandona a ONU, a Organização Mundial do Comércio, o Conselho de Direitos Humanos, a Organização Mundial de Saúde e outras instituições multilaterais. Para Donald Trump, tais instâncias representam amarras insuportáveis numa disputa contra um oponente também poderoso. Seu governo segue a risca a máxima de que numa batalha, a primeira coisa a ser questionada são suas próprias regras.

A Casa Branca decidiu acertar suas contas com o mundo, redefinindo estratégias – o inimigo é a China e a Rússia sai da alça de mira –, mudando pactos e alianças – a União Europeia e a OTAN perdem prioridade nesse quadro – e jogando a América Latina de volta à sua posição de quintal, como afirmou o secretário de Defesa, Pete Hegseth, em entrevista à Fox News, no início de abril. As políticas em relação a Israel e o Oriente Médio seguem intocadas, pelo peso que o sionismo tem no establishment estadunidense.

Donald Trump desmente a avaliação de Perry Anderson, reproduzida nas primeiras linhas deste artigo. Seu governo suscita um processo de desglobalização e autarquização defensiva ao redor do mundo. As volatilidades no câmbio, nas bolsas e nos mercados de ouro e na própria política doméstica expressam o choque comandado pela Casa Branca. As principais economias buscam formas de resistir.

A Alemanha aposenta políticas de austeridade e se remilitariza, o Canadá dá vitória a quem encarna o discurso nacionalista anti-Trump nas eleições parlamentares, Claudia Sheinbaum alcança picos de popularidade no México ao se opor às investidas do vizinho e por aí vai. O Brasil, por sua vez, até aqui não definiu linha clara de defesa.

A depender o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a adesão submissa será o caminho. “Temos interesse de nos aproximarmos mais dos Estados Unidos. Fizemos isso na administração Biden e faremos isso na administração Trump”, declarou ele na segunda-feira, 5 de maio. A frase está em linha com as principais decisões do governo em política externa: o país não exibe qualquer projeto de desenvolvimento, ao contrário do que fez nos anos 1930, diante da crise de 1929, no início dos anos 1970, quando enfrentou as turbulências do dólar e dos preços do petróleo, e em 2008, frente aos abalos nos mercados internacionais. Nos três casos, ampliou o gasto público, usou estatais e bancos públicos para realizar políticas anticíclicas.

Agora não. Reafirmam-se dogmas de austeridade, aceita-se um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia que pode impactar ainda mais a indústria brasileira, as turbulências abrem oportunidades para a venda de soja para a China, o ministro da Fazenda vai aos EUA negociar favores para que big techs instalem data centers no Brasil e ampliam-se políticas de concessões para campos de petróleo e empresas de energia, entre outras medidas.

É isso mesmo? Face à destruição de parâmetros civilizatórios, a saída é desmontar o Estado e voltar ao bom e velho fazendão de país colonial. A vida se complica quando recuos e falta de ousadia aparecem encobertos pelo duvidoso manto da sensatez e da aversão ao risco.

*Gilberto Maringoni é jornalista e professor de Relações Intercionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

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