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Gustavo José Simões
Gustavo José Simões, Engenheiro Mecânico, Doutor em Engenharia pela UFRJ e Historiador

A premência da retomada de investimentos da Petrobrás na Cultura

A retomada de investimentos da Petrobrás na Cultura do Brasil é urgente, mais voltado a população mais carente.

Publicado em 16/10/2023
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Em abril de 2023, Jean Paul Prates, presidente da Petrobrás, declarou que a estatal retomará os altos investimentos em Cultura, em patamares equivalentes aos dos maiores investimentos já praticados, pela Estatal, nessa área. A Figura 1 mostra os investimentos da Petrobrás na Cultura desde 2005, os valores, não corrigidos pelo IPCA, foram obtidos através de consulta aos Relatórios Anuais da empresa [1].

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 Figura 1: Investimentos da Petrobrás em Cultura (em milhões de reais). Fonte: Relatório Anual da PETROBRÁS [1].

A Figura 2, por sua feita, apresenta os investimentos da Petrobrás na Cultura, de 2005 a 2022, em percentual da receita líquida [1]. A análise desse percentual como parâmetro não sofre a depreciação inflacionária, tal como ocorreu no caso dos dados explicitados na Figura 1. O maior percentual, 0,25%, se refere ao ano de 2005. Comparando-se ao ano passado, 2022, esse percentual se reduziu em 98%. Em valores absolutos, sem considerar a correção da inflação, analisando a Figura 1, a redução dos investimentos da companhia na Cultura, de 2005 a 2022, foi de 89%.

Figura 2: Investimentos da Petrobrás em Cultura (% da receita líquida). Fonte: Relatório Anual da PETROBRÁS [1].

Um alto investimento em Cultura em 2023, adotando um percentual 0,25% em relação à receita líquida da companhia, considerando uma média dos últimos 3 anos dos valores da receita líquida, 455 milhões de reais, significa um valor esperado em torno de 113 milhões de reais. Isto representa um aumento de 4 vezes em relação ao investimento realizado em 2022. Esta esperada retomada nos investimentos na Cultura, conforme anunciado pelo presidente Prates, só poderá ser plenamente verificada no momento da divulgação do Relatório Anual de 2023.

A Petrobrás é a maior empresa do país. É uma estatal que foi criada com funções específicas, como o fornecimento estratégico de petróleo e seus produtos derivados a custos compatíveis com a realidade da sociedade brasileira, e atuar tendo em vista seu papel único para a promoção de um projeto brasileiro de desenvolvimento. Na verdade, uma política de preços mais justa é necessária e, além disso, um fomento maior a indústria do país. Esses são os objetivos sociais mais fundamentais que devem ser alcançados.

Os objetivos sociais dentro do escopo da companhia são fundamentais no delineamento e realização, aqui no Brasil, de uma sociedade justa, fraterna, politicamente consciente (e, portanto, não alienada) e socioeconomicamente desenvolvida. Entre alguns objetivos que se podem alcançar com maiores investimentos na Cultura poder-se-ia enumerar dois: a contribuição para a preservação do patrimônio público e histórico tão deteriorado mais recentemente e a contribuição para construção da Identidade Nacional através, por exemplo, do patrocínio ao cinema nacional.

A redução drástica nos investimentos da Petrobras no setor cultural reflete uma política governamental que reduziu significativamente os investimentos públicos no Brasil, de forma geral. Uma visão neoliberal que defende um estado mínimo, associada a uma visão na qual a arte e, de modo geral, a cultura, são vistas como ameaças. Nos últimos 10 anos, o orçamento federal destinado para a cultura, conforme apresentam os dados inerentes à Figura 3, recuou em 67%.

Figura 3: Orçamento federal para a Cultura (em R$ bilhões corrigidos pelo IPCA).
Fonte: Siga Brasi [2].

Para exemplificar o descaso com o patrimônio público e histórico nacionais, basta observar o recuo de 56,6%, comparando-se 2021 com 2011, no que tange ao orçamento autorizado para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, que é o órgão responsável pela preservação e divulgação do patrimônio material e imaterial do país [2]. Em relação ao fomento às artes visuais, à música, à dança, ao teatro e ao circo, a FUNARTE (Fundação Nacional de Artes) teve no mesmo período de comparação, uma redução de 56,7% no orçamento destinado a este órgão [2].

De forma contraditória e tipicamente paradoxal, muitos integrantes da parcela da dita classe média brasileira ao visitarem países europeus ficam deslumbrados com o estado de conservação de museus e espaços públicos. Entretanto, quando chegam ao Brasil esses falsos nacionalistas não entendem que o Estado deveria investir muito mais em cultura, pesquisa, saúde e educação.

Só para exemplificar, o museu do Louvre em Paris recebe do Estado francês cerca de 122 milhões de euros todos os anos, o que equivale a cerca de 665 milhões de reais. Por outro lado, aqui no Brasil, o Museu Histórico Nacional, criado em 1922, um dos mais importantes museus do país, foi praticamente destruído por um incêndio em 2018; e justamente em 2018 o orçamento desse museu foi o mais baixo em 10 anos, apenas R$ 268,4 mil. Literalmente, por óbvio, trata-se de projeto de destruição da história e da cultura do país.

É necessário se refletir sobre a história do conceito de patrimônio cultural, que remete à Revolução Francesa. Nesse período a burguesia passa a ter poder político, além do poder econômico que já possuía. Os valores da sociedade foram modificados, o poder passou a ser exercido por outra classe social. Os monumentos associados ao Antigo Regime foram depredados ou destruídos. Nesse contexto, historiadores em geral criam a ideia de patrimônio cultural, com o intuito de preservar da fúria revolucionária o legado arquitetônico francês. Logo, o conceito de patrimônio ficou vinculado ao dos patrimônios materiais [3]. Muitas vezes, no entanto, essa preservação do patrimônio material significou também uma ressignificação dos patrimônios existentes. Nunca vivemos um momento na história recente do país no qual essa ressignificação, nos pós governo entreguista, foi tão importante.

O patrocínio da Petrobrás ao setor cultural já cotejou o apoiou à recuperação e organização do acervo material e imaterial da cultura brasileira. Em períodos diversos e muitas vezes ininterruptos, a companhia apoiou projetos diretamente ligados à manutenção e preservação de diversos museus do Brasil, como o Museu de História Natural (RJ), Museu de Arte Sacra (RJ), Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco e o Museu Lasar Segall (SP). Tais iniciativas devem ser ampliadas e continuadas.

Além do investimento para ressignificar e restaurar o patrimônio histórico brasileiro, essa finalidade se relaciona, na verdade, com um objetivo maior, que é a construção da Identidade Nacional. É necessária alguma análise sobre a construção da Identidade Nacional, objetivo que a Petrobrás historicamente tem contribuído, por exemplo, através do patrocínio ao cinema e ao teatro nacional.

O passado colonial foi doloroso para os povos originários e os negros no Brasil. Mas, de fato, as tantas deletérias consequências da escravidão, por mais de 350 anos, ainda perduram até os dias atuais. A própria Identidade Nacional deve ser entendida como uma construção histórica, pois muitas vezes ocorreu um profundo distanciamento da realidade, como bem analisado no trabalho “Identidade nacional e ensino de história: a diversidade como patrimônio sociocultural” [4].

Já a partir de 1870, havia uma constatação de uma falta de autenticidade da cultura brasileira. Para muitos, nessa época a nação mestiça era entendida como uma nação degenerada. Baseado neste tipo de crença absurda foi adotado como projeto da nação um progressivo embranquecimento.
Entretanto, já no final do século XIX, felizmente começa, gradativamente e em meios mais intelectualizados e progressistas, uma valorização dos potenciais diversos ao Brasil o fato de o povo brasileiro ser, majoritariamente, mestiço. E, também mui gradativamente, o convívio harmonioso passa a ser visto como uma particularidade positiva do Brasil. Não demorou muito para se constatar que o povo deveria ser importante como sujeito da história, na construção da identidade brasileira, apesar de não ser uma visão unânime naquela época e, lamentavelmente, nem na contemporaneidade. Mas era inevitável um olhar que cotejasse, finalmente, uma visão decolonial e focada na valorização do povo brasileiro e de suas origens.

Logo após a Primeira Guerra Mundial, ou seja, a partir de fins da primeira década do século XX, ocorre uma crítica à civilização europeia como modelo. Então, novos projetos de Identidade Nacional começaram a ser criados. Esse período imediatamente pós 1ª Grande Guerra, serviu para mostrar, a partir dos horrores vistos neste macro conflito bélico (no qual cerca de 20 milhões de pessoas faleceram), que a civilização europeia podia ser questionada e que outros países do cenário internacional, como o Brasil, precisavam buscar uma identidade mais própria. A partir do Estado Novo (1937-1945), ocorre o início de uma percepção de que o povo brasileiro e suas origens culturais e genéticas deveriam ser valorizadas.

Destarte, o Estado Novo procurava se distanciar da primeira república e do período colonial, reescrevendo, de certa forma, a história do Brasil apoiando o “mito da democracia racial”.

Na década de 1970, em plena Ditadura Militar, o conceito de raça estava sendo mais politizado, no sentido de um enfrentamento ao mito da democracia racial [5], com estratégias e ações como o Movimento Negro Unificado (1978).

O antropólogo Darcy Ribeiro, em seu livro “O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” [6], descreve um “povo novo”, que é produto da fusão de culturas milenares num contexto socioeconômico marcado por profundas desigualdades sociais. Darcy Ribeiro, indubitavelmente, é fundamental para a percepção da Identidade Nacional. O Brasil seria a nova Roma, lavada em sangue índio e negro e estaria destinada a desempenhar um importante papel no mundo [6].

Desde então, também a partir de visões mais progressistas, nas quais as minorias deveriam de fato ser incluídas na sociedade através de políticas públicas, foi paulatinamente possível se adotar uma valorização das diversas culturas presentes no que constitui o Brasil como nação. E as produções com qualidade e relevante preocupação social realizadas pelo cinema nacional (por exemplo), passaram a ter um papel fundamental nesse processo, permitindo um estudo da pluralidade na medida da naturalização e da valorização de uma convivência harmônica entre pessoas de origens, costumes e dogmas religiosos diversos.

No caso da Petrobrás foi significativo esse investimento na retomada do cinema nacional para a construção da Identidade Nacional. Muitos são os exemplos de filmes patrocinados pela Petrobrás com grande público e com respectivas reflexões necessárias. Em 1994, por exemplo, a estatal patrocinou o filme “Carlota Joaquina – Princesa do Brasil”, dirigido por Carla Camurati. Posteriormente, outros importantes filmes feitos com recursos da Petrobrás se destacam, tais como: “O Quatrilho” (1995), “O que é isso, companheiro?” (1997), “Bicho de sete cabeças” (2000), “Cidade de Deus” (2002), “Carandiru” (2003), “Tropa de Elite” (2007) e “O som ao redor” (2018).

Concluindo, a retomada de investimentos da Petrobrás na Cultura do Brasil é urgente, mais voltado a população mais carente. Ao longo de sua história esse papel foi relevante, tendo contribuído com importantes projetos relacionados ao cinema nacional, ao teatro, à música e em prol da preservação do patrimônio histórico. A continuidade e/ou retomada de tais iniciativas são fundamentais para construção da Identidade Nacional e fomento à uma sociedade mais justa e consciente.

Referências

[1] RELATÓRIO ANUAL DA PETROBRAS. Disponível em:<https://petrobras.com.br/sustentabilidade/relatorios-anuais>. Acesso em: 11 de outubro 2023.
[2] SIGA BRASIL. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil. Acesso em: outubro 2023.
[3] CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Capítulo VI. São Paulo, UNESP. 2001, pp. 205-258.
[4] GONTIJO, R. Identidade nacional e ensino de história: a diversidade como “patrimônio sociocultural”. In: M. ABREU; R. SOIHET (org.), Ensino de história: conceitos, temáticas, metodologia. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, p. 55-79, 2003.
[5] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Vols. 1 e 2. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2008 [Edição original publicada em 1964].
[6] RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Gustavo José Simões
Engenheiro Mecânico, Doutor em Engenharia pela UFRJ e Historiador.

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