A economia de almoço grátis dos EUA
Os senhorios estão dominando a sociedade
Michael Hudson entrevistado
por Ben Norton
(Introdução)
BEN NORTON: Os senhorios estão a dominar a sociedade. Para muitos trabalhadores comuns, tornou-se impossível comprar uma casa. E o custo do arrendamento tornou-se proibitivamente caro.
Este problema é especialmente grave nos Estados Unidos. Mas não é um problema exclusivo dos EUA; é um problema em muitos países ao redor do mundo — especialmente nos países ocidentais da América do Norte e Europa, cujas economias se tornaram financeirizadas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o maior senhorio não é um indivíduo, mas uma enorme empresa de investimentos da Wall Street: a Blackstone, um fundo de capital privado (private equity fund).
A Blackstone possuía mais de 300 mil unidades habitacionais para arrendamento nos EUA em 2023. O número aumentou desde então.

A Blackstone e outros fundos de investimento de Wall Street têm devorado habitações residenciais. A seguir aumentam o custo do arrendamento, o que alimenta a falta de moradias, pois muitas pessoas estão a ser despejadas das suas casas.
A propósito, o CEO multimilionário da Blackstone, Stephen Schwarzman, que é o CEO mais bem pago da Wall Street, foi um dos principais financiadores da campanha presidencial de Donald Trump em 2024.
Agora que Trump voltou a ser presidente dos EUA, isso dá ao multimilionário Stephen Schwarzman e à Blackstone muita influência na formulação das políticas de Trump.
É claro que Trump tem reduzido massivamente os impostos sobre os ricos — beneficiando multimilionários como Stephen Schwarzman, que ajudou a financiar a sua campanha.
69% dos cortes de impostos na “Big Beautiful Bill” de Trump vão para os 20% mais ricos dos americanos. Apenas 6% vão para os 40% mais pobres.
O governo dos EUA está a implementar muitas outras políticas que beneficiam esses proprietários corporativos da Wall Street que estão a devorar casas em todo o país.
A Business Insider informou em 2022 que os investidores institucionais dos EUA compraram 25% das casas unifamiliares revendidas no terceiro trimestre de 2022.

Revender uma casa significa que um investidor compra uma casa — geralmente velha e em mau estado — e depois investe alguns milhares de dólares na sua renovação. Em seguida, vende-a e obtém lucros enormes de dezenas de milhares ou mesmo centenas de milhares de dólares.
Não são apenas pessoas comuns que fazem isto. Cada vez mais, são investidores institucionais, muitos deles da Wall Street.
A Business Insider relata que os investidores estavam por trás de 44% das compras de casas unifamiliares nos EUA no terceiro trimestre de 2022. E este problema só está a agravar-se.
A CNBC informou que companhias financeiras da Wall Street compraram centenas de milhares de casas unifamiliares desde a Grande Recessão, provocada pela própria Wall Street em 2008 e 2009.
Aquela crise também levou milhões de americanos a perderem as suas casas. Portanto, Wall Street é responsável por muitos desses problemas.
A CNBC registou uma estatística incrível, estimando que «os investidores institucionais podem controlar 40% das casas unifamiliares para arrendamento nos EUA até 2030».

Estes são os novos senhores feudais. São proprietários corporativos que estão a devorar casas nos EUA.
O governo dos EUA desempenhou um papel importante no apoio a esses private equity funds e outras empresas da Wall Street que estão a comprar todas essas casas — estes são os latifundiários (landlords) da Wall Street.
A CNBC observou que «o setor de arrendamento de casas unifamiliares começou com o apoio do governo após a crise financeira de 2008» — que, mais uma vez, foi causada pela Wall Street.

A reportagem da CNBC citou o congressista da Califórnia Ro Khanna, que disse: “O ultrajante é que o dinheiro dos seus impostos está a ajudar a Wall Street a comprar casas unifamiliares”.
O New York Times publicou um artigo em que explica como firmas financeiras de Wall Street estão a comprar basicamente todas as casas residenciais em quarteirões inteiros em bairros dos EUA.
O Times mostrou o exemplo de um pequeno bairro em Charlotte, Carolina do Norte, chamado Bradfield Farms, que tem 34 casas. Os investidores compraram 33 dessas casas. Todas elas, exceto uma, agora são propriedade de investidores, que as puseram para arrendamento. E, claro, aumentam enormemente o custo da renda.

Como disse o New York Times, «um recém-chegado tem mais probabilidades de arrendar uma casa a um senhorio corporativo».
O jornal acrescentou: “A Wall Street inicia-se no negócio das casas”.
O New York Times analisou várias cidades diferentes onde [grandes] investidores estão a devorar casas residenciais, incluindo Atlanta, Memphis, Orlando, Tampa, Las Vegas, Houston e San Antonio.
Este relatório observou que os investidores visam principalmente bairros de classe média e trabalhadora, especialmente com grandes populações negras e latinas.
Assim, vemos cada vez mais que os americanos da classe trabalhadora, em particular os negros e latinos, agora já não conseguem ter uma casa, porque as mesmas estão a ser compradas por estes senhorios, estes investidores, incluindo senhorios corporativos da Wall Street – e eles têm de pagar rendas cada vez mais altas à classe dos senhorios.
Esta é uma das grandes razões porque a falta de moradias está a explodir nos EUA.
Apenas em 2024, o número oficial de pessoas sem-abrigo reconhecidas aumentou 18%, num ano. E essa é muito provavelmente uma estimativa conservadora, porque muita gente sem-abrigo não vai para abrigos e não está registada no sistema.
No entanto, devo enfatizar que este não é um problema exclusivo dos Estados Unidos. Isto está a acontecer em países de todo o mundo, especialmente nas economias financeirizadas ocidentais.

Um bom exemplo disso é a Espanha. O New York Times publicou outro relatório muito interessante. Ele analisa como, em Madrid, firmas americanas de investimento da Wall Street, do outro lado do Atlântico, também têm comprado casas na Europa.
Já mencionei que o private equity fund Blackstone é o maior proprietário de imóveis dos EUA, com mais de 300 mil unidades para arrendar.
Bem, a Blackstone também se tornou a segunda maior proprietária de todas as casas em Espanha. E a Blackstone é a maior proprietária privada de imóveis residenciais em Madrid, a capital.
A Blackstone possui 13 mil unidades habitacionais só em Madrid e quase 20 mil unidades para arrendamento em toda a Espanha.
O New York Times relatou que, “em toda a Espanha, cerca de 185 mil imóveis para arrendamento agora pertencem a grandes corporações, metade delas com sede nos Estados Unidos”, principalmente na Wall Street.
E, surpresa, surpresa, como esses proprietários corporativos devoraram casas, em uma década, desde 2015, os valores das rendas aumentaram 57%. No mesmo período os preços das casas aumentaram 47% na Espanha.
Portanto, o que estamos a assistir é que os proprietários estão a tomar conta da sociedade, em particular no Ocidente.
Para discutir este tema, hoje tenho o privilégio de entrevistar o renomado economista Michael Hudson, autor de muitos livros, incluindo Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Bondage Destroy the Global Economy (Matando o anfitrião: Como os parasitas financeiros e a escravidão da dívida destruíram a economia global).
Hoje falamos sobre como o capitalismo evoluiu do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro, especialmente na era neoliberal, desde a ascensão dos fundamentalistas do «mercado livre», como Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher no Reino Unido, na década de 1980.
Eles falam acerca dos chamados «mercados livres», mas, como Michael Hudson aponta, quando eles dizem mercados livres, querem dizer a liberdade dos senhorios corporativos e da Wall Street de comprar todos os ativos existentes, a liberdade dos monopolistas de monopolizar indústrias inteiras e extrair rendas monopolistas.
Michael Hudson analisa como eles estão a destruir a economia dos EUA e do Ocidente em geral, e como se pode combater estes senhorios corporativos.
Esta é a segunda parte de uma discussão que tive com Michael Hudson, baseada num artigo por ele publicado, intitulado How the Global Majority can free itself from US financial colonialism (Como a maioria global pode libertar-se do colonialismo financeiro dos EUA).
Agora vou reproduzir alguns dos pontos principais que Michael Hudson levantou e, em seguida, passaremos diretamente para a segunda parte da nossa discussão.
MICHAEL HUDSON: A renda é o que John Stuart Mill disse que os proprietários ganham enquanto dormem. Eles ganham sem trabalhar. Não desempenham um papel produtivo.
...
Quando os economistas modernos falam sobre o «mercado livre», não estão a falar sobre o que Adam Smith, John Stuart Mill e outros falavam. Eles se referiam a um mercado livre da renda econômica, livre da classe dos proprietários que cobram rendas, que têm de ser pagas com o dinheiro dos empregados.
...
Um dos problemas dos países do Sul Global e da Maioria Global é que enviaram os seus estudantes mais promissores para os Estados Unidos para estudar economia. E o currículo económico que é ensinado hoje não fala sobre esse tipo de mercado livre, nem sobre as reformas do mercado livre como forma de libertar as economias da renda econômica. Houve uma contrarrevolução nos Estados Unidos e na Europa contra as reformas capitalistas industriais. Os rentistas reagiram.
...
O que a China fez que as outras nações, as nações ocidentais, não fizeram foi completar a revolução capitalista industrial, mantendo os bancos e a criação de dinheiro no domínio público.
Assim, na China, é o Banco Popular da China que cria dinheiro e determina quem vai receber o crédito e em que condições.
Não é esse o caso no Ocidente. No Ocidente, são os bancos comerciais que determinam quem vai receber o dinheiro e a quem conceder crédito.
Tudo o que lhes interessa é obter o ganho mais rápido possível. E o ganho mais rápido é possível emprestando dinheiro a um investidor agressivo, para que este adquira uma empresa, essencialmente dividindo-a em partes, vendendo os seus imóveis e arrendando-os de volta, utilizando o preço de venda como um dividendo especial.
As empresas pedem empréstimos até para comprar as suas próprias ações. Pedem empréstimos a taxas baixas ao abrigo da flexibilização quantitativa e compram ações que rendem uma taxa mais elevada.
Os bancos ocidentais estão em empréstimos improdutivos, e a China concentra-se em empréstimos produtivos.
(Entrevista)
BEN NORTON: Michael, é sempre um prazer ter-te conosco. Obrigado por te juntares a nós hoje. Então, Michael, esta é a segunda parte da nossa discussão. Na primeira parte, discutimos a ideia do «colonialismo financeiro centrado nos EUA» que discutiste no teu artigo. Falaste sobre formas como os países podem criar alternativas num mundo mais multipolar e, em particular, como podem desafiar a dívida em que estão presos; e como, em última análise, é impossível pagar esta enorme dívida denominada em dólares, pelo que não devem pagá-la; em vez disso, devem procurar alternativas.
Aqui, na segunda parte, vamos falar sobre como os proprietários estão a dominar a sociedade e a tornar o custo de vida proibitivo para os trabalhadores.
Para entender por que isso está a acontecer, temos que entender a ideia de renda económica e como ela difere do valor e do lucro.
Vamos começar com uma pergunta muito ampla. Pode explicar por que achou importante escrever este artigo? Descreveu-o como quase uma espécie de manifesto. E qual é o seu principal argumento sobre como a Maioria Global pode libertar-se do colonialismo financeiro dominado pelos EUA?
MICHAEL HUDSON: Bem, escrevi o artigo porque há uma tendência da Maioria Global, e especialmente do Sul Global, de ir apenas até meio caminho e não enfrentar o facto de que, nos últimos 200 anos, desde a revolução industrial, toda a dinâmica das nações industrializadas — Grã-Bretanha, França, Alemanha e Estados Unidos — tem sido revolucionária. Elas livraram-se dos vestígios do feudalismo. Livraram-se da classe rentista. Definiram o mercado livre como um mercado livre de renda económica, renda fundiária, renda monopolista. E queriam reformar as finanças. E fizeram muitas dessas coisas.
Mas, no seu investimento estrangeiro, desde o início do século XIX, queriam que os outros países não protegessem a sua indústria, mas que fornecessem matérias-primas às nações industrializadas e, essencialmente, que deixassem os países com excedentes comerciais, as nações industrializadas, usar esses excedentes para obter dinheiro para emprestar aos produtores de matérias-primas e investir nas suas terras, recursos naturais e infraestruturas públicas.
Assim, o que se criou foi uma economia espelhada. O mundo ficou dividido em dois tipos de economia: uma economia capitalista industrial reformista nas nações industrializadas e economias rentistas, em grande parte de propriedade estrangeira, já que os rentistas eram estrangeiros, em todo o resto do mundo que não se protegia, não tinha governos fortes o suficiente para apoiar a sua própria indústria, devido à dominação estrangeira.
Um mapa do centro e da periferia de acordo com a teoria da dependência
Esses países nunca conseguiram ir além dos resquícios do colonialismo estrangeiro e do imperialismo financeiro, podemos chamá-lo assim. E o que enfrentam é basicamente o mesmo tipo de problema que a Grã-Bretanha e a Europa enfrentaram: como os capitalistas industriais minimizam seus custos de produção livrando-se de todas as sobretaxas dos rentistas? Essencialmente, fazendo com que o governo assuma muitos dos encargos da economia, libertando a economia dos monopólios; tributando progressivamente o rendimento, especialmente o rendimento das matérias-primas e o rendimento da terra.
O caso dos países do Sul Global é exatamente o oposto. Os estrangeiros são donos das suas matérias-primas. Os estrangeiros conseguiram essencialmente usar a alavancagem da dívida para dizer: bem, vamos usar o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, nos Estados Unidos, para emprestar-vos dinheiro para que possam financiar os vossos défices comerciais resultantes da vossa não industrialização.
Mas esses empréstimos serão concedidos em condições que nos permitam comprar a vossa indústria, privatizar o vosso domínio público, privatizar os vossos monopólios naturais e cobrar rendas monopolistas, em vez de fornecer serviços públicos, saúde, educação, comunicações e transportes a preços subsidiados para ajudar a criar uma economia industrial competitiva.
A menos que a Maioria Global, e especialmente os países do Sul Global, reestruturem a sua economia da mesma forma radical que a Europa reestruturou a sua, não será possível escapar da atual especialização do trabalho mundial, do investimento e da dependência económica.
É disso que se trata realmente. O que é necessário em termos de política interna para que os países sejam soberanos e realmente independentes, em vez de terem de gastar todas as suas receitas fiscais e reorganizar a sua economia apenas para pagar as suas dívidas externas em dólares e permitir que os investidores estrangeiros enviem toda a renda da terra, dos recursos naturais e do monopólio para fora dos seus países, para as nações credoras industriais.
BEN NORTON: Obrigado, Michael. Foi um ótimo resumo do seu argumento principal. Vamos falar mais sobre essa ideia da classe rentista. Você aponta que os economistas políticos clássicos, pessoas como Adam Smith e David Ricardo, que são tão frequentemente citados pelos economistas neoliberais mainstream de hoje, muitas vezes não leem realmente o trabalho desses economistas políticos.
Se voltarmos e lermos os economistas políticos clássicos, vemos que eles eram ferozmente críticos da classe dos proprietários de terras e viam esses proprietários como remanescentes dos aristocratas feudais, que usavam o seu controlo sobre monopólios, monopólios naturais e terras para cobrar rendas monopolistas. Eles não produziam nada, não contribuíam com nada produtivo para a economia.
Aqui estão algumas citações de Adam Smith na sua obra-prima, A Riqueza das Nações, escrita em 1776 (ênfase acrescentada):
«Assim que a terra de qualquer país se torna propriedade privada, os donos da terra (landlords), como todos os outros homens, gostam de colher onde nunca semearam e exigem uma renda mesmo pelos produtos naturais» (Livro 1, capítulo 6).
«O dono da terra exige uma renda mesmo pela terra não melhorada, e os supostos juros ou lucros sobre as despesas de melhoria são geralmente um acréscimo a esta renda original.
Além disso, essas melhorias nem sempre são feitas com o capital do proprietário, mas às vezes com o do arrendatário. Quando o contrato de arrendamento chega ao fim, porém, o proprietário exige normalmente o mesmo aumento da renda, como se todas as melhorias tivessem sido feitas por ele» (Livro 1, capítulo 11)..
“A renda da terra, portanto, considerada como o preço pago pelo uso da terra, é naturalmente um preço de monopólio. Ela não é de forma alguma proporcional ao que o proprietário pode ter gasto na melhoria da terra, ou ao que ele pode pagar; mas ao que o agricultor pode pagar” (Livro 1, capítulo 11).
Os economistas políticos clássicos diferenciavam os donos da terra dos capitalistas industriais — que, sim, exploravam a mão-de-obra. E isso é algo que Karl Marx, é claro, enfatizou mais tarde, a mais-valia extraída dos trabalhadores.

No entanto, existe esta ideia de que Marx era completamente diferente dos economistas políticos clássicos como Adam Smith. Mas, na realidade, Marx tinha muito mais em comum com Smith e Ricardo do que os economistas neoclássicos e marginalistas de hoje, que não apoiam a teoria do valor-trabalho — enquanto Smith, Ricardo e Marx concordavam com a teoria do valor-trabalho, que o valor vem, em última instância, dos trabalhadores que produzem algo.
Portanto, a classe rentista não produz nada. E é por isso que os economistas políticos clássicos viam os capitalistas industriais como revolucionários em comparação com os proprietários de terras.
Até o próprio Marx. Leia o Manifesto Comunista. O início do primeiro capítulo elogia o capitalismo como uma força revolucionária contra o feudalismo.
Marx e Engels escreveram:
A burguesia, historicamente, desempenhou um papel revolucionário.
A burguesia, onde quer que tenha conquistado o domínio, pôs fim a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas.
...
A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, com eles, as relações de produção e, consequentemente, todas as relações sociais.
O seu argumento, Michael, é que, com a crescente financeirização do capitalismo, este afastou-se desse elemento progressista que talvez fosse verdadeiro nos primórdios e tornou-se cada vez mais monopolizado, com cada vez menos concorrência, cada vez menos produtividade real, cada vez menos inovação e cada vez mais exploração e extração de rendas monopolistas.
Pode falar mais sobre essa ideia?
MICHAEL HUDSON: Sim, é mais complicado do que isso. A expressão teoria do valor-trabalho é muito enganosa. É realmente uma teoria da renda económica.
O que estamos a tratar, e o que todos os economistas clássicos tinham em comum, preparando o caminho para Marx e mais tarde Thorstein Veblen e outros, era uma teoria do valor, do preço e da renda.
Preço era o excesso de valor, o qual é o custo básico de produção. O valor era definido como o que uma economia precisa como custo necessário de produção para os industriais. E quanto é desnecessário?
Bem, o que Marx descreveu que o capitalismo industrial fazia, olhando para os 100 anos anteriores à sua obra, era que o capitalista queria livrar-se de todos os custos de produção desnecessários, os custos que não fazem realmente parte da natureza, que não são custos reais, mas sim custos legais — o direito legal dos latifundiários de cobrar renda, ao invés de terem a renda coletada pelo Estado como sua base tributária natural, que foi o que Adam Smith, [David] Ricardo, John Stuart Mill e, acima de tudo, Marx e os socialistas desenvolveram.
Toda a ideia da teoria do valor e do preço era reduzir os preços ao valor real, o custo de produção.
Chamar isso de teoria do valor-trabalho significava que, em última análise, o custo real da produção é o trabalho.
A terra foi produzida livremente, pela natureza. Não há custo de produção para a terra, mas os proprietários cobram por ela.
Os monopólios são criados por leis. Não são naturais. São privilégios monopolistas, muitas vezes criados na Idade Média pelos governos, com a ajuda dos seus banqueiros, para encontrar uma forma de extrair rendas monopolistas da economia, a fim de angariar dinheiro para pagar os juros das dívidas de guerra que os reinos europeus contraíram.
O setor bancário tão pouco precisa ser privatizado e gerido em benefício dos credores.
Na verdade, Adam Smith — com exceção de Ricardo, que era porta-voz dos bancos — quase todos os economistas de meados do século XVIII escreveram sobre como os bancos não emprestavam para a indústria e o desenvolvimento; não forneceram a James Watt o dinheiro para construir as suas máquinas a vapor. Ele teve de hipotecar a sua própria casa.
Especialmente os bancos ingleses e americanos não emprestavam para finalidades industriais; era um sistema bancário usurário. Os empréstimos eram concedidos principalmente para poderes rentistas, para comprar propriedades rentistas, como terras, ou monopólios — como o investimento ferroviário estrangeiro, que era a coisa mais importante no mercado de ações do século XIX.
As comunicações, o desenvolvimento portuário, o desenvolvimento rodoviário eram todas coisas que eram financiadas, que eram adicionadas ao custo de produção, todos os tipos de encargos monopolistas que a teoria clássica do valor, preço e renda queria eliminar.
Quando economistas modernos falam sobre o «mercado livre», não estão a falar sobre o que Adam Smith, John Stuart Mill e outros falavam; eles referem-se a um mercado livre de renda económica, livre da classe dos proprietários que cobravam rendas que tinham de ser pagas com os salários dos empregados.
Enquanto a terra fosse propriedade dos proprietários e enquanto os proprietários, especialmente na Grã-Bretanha, impusessem tarifas agrícolas especiais, como as Leis do Milho — que impediam a Grã-Bretanha de importar alimentos a preços baixos para alimentar a mão de obra, para que pudessem obter rendas agrícolas mais elevadas nas suas terras, gerando custos muito elevados — não havia maneira de a Grã-Bretanha competir com outros países industriais.
Esse era o tema central de David Ricardo. Embora fosse porta-voz dos banqueiros, ele criticava a classe dos proprietários de terras, porque, se a Inglaterra protegesse os seus proprietários, os seus latifundiários, então a Inglaterra não seria a oficina do mundo. E se a Inglaterra não fosse a oficina do mundo, então os banqueiros britânicos não poderiam obter lucros e juros no seu principal mercado, que era o financiamento do comércio externo e as transferências cambiais.
Portanto, toda a ideia dos industriais e da classe bancária, trabalhando em conjunto, era livrar-se das rendas fundiárias e das rendas monopolistas, tornar a Grã-Bretanha muito mais eficiente e competitiva, baixando os preços para o valor real, livrando-se da renda económica, para que pudessem vender mais barato do que outros países.
Então, apoiando o livre comércio em vez do protecionismo agrícola — e isso numa época em que a classe dos proprietários ainda controlava a Câmara dos Lordes, a câmara alta do governo, e era capaz de ditar os seus próprios interesses — a ideia era que a reforma parlamentar para libertar a política da classe dos proprietários de terras permitisse aos reformadores, aos industriais e aos banqueiros libertar os mercados do poder da classe dos proprietários de terras de impor rendas, do poder dos monopolistas de cobrar taxas elevadas, eliminando os monopólios e impondo a concorrência, como fizeram os Estados Unidos com as suas leis antimonopólio.
Países como a Alemanha, no final do século XIX, transformaram o sistema bancário. Em vez de permitir que os bancos emprestassem dinheiro para fins improdutivos, basicamente o que Marx chamava de banca usurária, a Alemanha assumiu a liderança na industrialização da banca e fez com que a criação de dinheiro e o crédito bancário se concentrassem no financiamento do investimento de capital na indústria, o que lhe permitiu ascender tão rapidamente e tornar-se uma potência industrial.
Bem, nada disso ocorreu em países estrangeiros. A Grã-Bretanha adotou o livre comércio e fez um acordo político com outros países quando aboliu as Leis do Milho em 1846, e disse aos Estados Unidos, à América Latina e a outros países: “Nós os deixaremos entrar no mercado britânico, sem tarifas, se nos deixarem entrar no vosso mercado. Por que vocês não compram no mercado mais barato? Nós temos uma vantagem inicial. Passámos cem anos a dar a nós próprios uma vantagem inicial e a reformar a nossa economia para que pudéssemos fornecer-vos indústria muito mais barata. Porque não exportam as vossas matérias-primas em troca da nossa indústria? Será uma economia mundial feliz e unificada. Todos produzem aquilo em que são melhores».
David Ricardo deu um exemplo matemático da troca de tecidos britânicos por vinho português. E no exemplo de Ricardo, ele foi tão desonesto, tão retórico, que fez de Portugal, o fornecedor de matéria-prima, o «vencedor» nos ganhos do comércio.
O tipo de teoria do comércio internacional [da vantagem comparativa] que é ensinada, até hoje, é toda baseada na teoria do livre comércio ricardiano. Ela deixa de fora a dimensão política, a dimensão social, toda a ideia do papel da renda econômica na determinação das estruturas de preços internacionais e da concorrência.
Bem, um dos problemas dos países do Sul Global e da Maioria Global é que enviaram os seus estudantes mais promissores para os Estados Unidos para estudar economia. E o currículo económico que é ensinado hoje não fala sobre esse tipo de mercado livre, ou sobre as reformas do mercado livre como forma de libertar as economias da renda económica. Houve uma contrarrevolução nos Estados Unidos e na Europa contra as reformas capitalistas industriais. Os rentistas reagiram.
No final do século XIX, tínhamos John Bates Clark nos Estados Unidos, os austríacos na Europa e os liberais britânicos, todos a dizer: «Bem, não existe realmente tal coisa como renda económica. Não há diferença entre preço e valor. O preço pelo qual um bem ou serviço é vendido é o que os consumidores decidem pagar. É toda a procura dos consumidores por tudo. Todos ganham o que recebem. Não existe renda econômica”.
É isso que os estudantes aprendem aqui. E depois voltam para os seus países. E existe uma crença nesses países — eu mesmo já vi isso na China, onde os meus estudantes reclamam que os estudantes formados nos Estados Unidos têm preferência nos empregos – mas eles certamente não aprendem marxismo nos Estados Unidos.
O único grupo que ainda fala sobre Adam Smith, John Stuart Mill, Ricardo e toda a escola clássica de economia são os marxistas, porque toda essa lógica de valor, preço e renda culminou em Marx, que foi realmente o santo padroeiro da contabilidade económica.
Ele realmente trabalhou nos balanços patrimoniais de empresas industriais e criou um modelo da economia. E nesse modelo, ele distinguiu o capitalismo industrial do que veio antes, basicamente da época feudal e dos rentistas.
Ele disse que Adam Smith estava certo. John Stuart Mill estava certo. A renda é o que John Stuart Mill disse que os proprietários ganham enquanto dormem. Eles ganham sem trabalhar. Não desempenham um papel produtivo. E a economia é dividida em duas metades: a economia da produção e a economia da circulação.
Agora, é verdade, como você apontou há alguns minutos, que o industrial vende os produtos que os seus empregados fabricam; ele vende esses produtos do trabalho por mais do que lhe custa contratar a força de trabalho.
Mas Marx disse que isso é criar valor. O industrialista realmente organiza a produção. O industrialista não ganha lucros enquanto dorme. Ele organiza uma cadeia de abastecimento de matérias-primas. Ele desenvolve mercados e todo um sistema de marketing. Ele organiza a indústria. Ele moderniza outros meios de produção, constantemente.
Então, Marx incluiu os lucros industriais como um elemento de valor e disse que, se olharmos para a parte da economia que produz valor, isso certamente incluirá os lucros industriais, mas excluirá a renda da terra, a renda dos recursos naturais, a renda do monopólio e os juros financeiros, que são obtidos apenas porque os bancos compraram o poder monopolista de criar dinheiro e crédito, que é aceito como moeda legal para o pagamento de impostos. Esta é uma criação legal que não é necessária.

Bem, imagine se estivéssemos a fazer um modelo de conta de rendimento nacional e produto, ou do produto interno bruto, dos Estados Unidos e da Europa, de todos os países do mundo sob as Nações Unidas, uma espécie de formatação do produto interno bruto, que incluísse a renda da terra, os serviços financeiros e a renda monopolista.
Nos Estados Unidos, por exemplo, tentei separar a procura de rendimentos do valor real do PIB da renda económica excessiva no PIB. Perguntei ao Departamento de Comércio: quando um banco impõe encargos de mora de 20% ou 30% aos utilizadores de cartões de crédito, aumentando os juros de 19% para mais de 30%, onde é que isso aparece no PIB? Eles responderam que isso é a prestação de um serviço financeiro. Portanto, é considerado um serviço.
Bem, os economistas clássicos diziam que os monopolistas, os banqueiros e os proprietários não prestam um serviço. Eles têm um privilégio especial de obter dinheiro. Mas isso não é um produto. As taxas de atraso não são um produto. Receber juros e receber rendimentos dos juros que se obtém não é um lucro.
O aumento dos preços da habitação, que na verdade é apenas o aumento do preço do terreno, e não do edifício, mas o preço sobe apesar de o edifício permanecer o mesmo; tudo isso não é um produto; é essencialmente inflação dos preços financeiros.
A renda deste local, que está a subir, a renda do terreno, é usada para pagar juros aos bancos. E assim, os Estados Unidos e a Europa livraram-se de uma classe feudal de proprietários hereditários. Já não temos uma classe de proprietários. Democratizámos a habitação e o imobiliário comercial. Qualquer pessoa pode comprar uma casa, comprar imóveis comerciais. Mas a maioria das pessoas tem de o fazer através de um empréstimo hipotecário.
E como é que obtêm um empréstimo hipotecário? Fazem uma licitação entre si, e o vencedor é o comprador que promete pagar ao banco a maior parte da renda do terreno e outros rendimentos rentísticos como juros.
Assim, de algum modo, a economia ocidental transformou-se numa economia rentista, o que levou à desindustrialização.
A menos que os países do Sul Global e os países da Maioria Global façam o que a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e os Estados Unidos fizeram no século XIX, ou o que a China fez após a revolução de 1949, não serão capazes de ter uma alternativa económica que lhes permita ser potências industriais competitivas, responsáveis pelos seus próprios rendimentos.
Ao invés, transferem toda a renda económica da sua economia para os proprietários estrangeiros, para os investidores estrangeiros na sua mineração, na sua indústria petrolífera, na sua infraestrutura pública, que foi desenvolvida e os deixam com toda essa superestrutura de dívida externa, que impede os seus governos de investirem para apoiar a economia; de investir na sua própria infraestrutura nova para servir a economia, em vez de estradas e portos para investidores estrangeiros.
É necessária toda uma revolução estrutural na organização da economia e da sociedade, tal como todo o sistema político parlamentar na Europa teve de ser reestruturado, a fim de introduzir as reformas económicas que tornaram as nações industriais muito mais eficientes e os países em que investiram muito menos eficientes.
BEN NORTON: Análise muito importante, Michael. O que disse lembrou-me o trabalho de Giovanni Arrighi, o economista político que infelizmente faleceu em 2009.
Em 2007, ele escreveu um livro muito interessante, pouco antes de os EUA causarem uma enorme crise financeira, intitulado Adam Smith in Beijing.
Nesse livro, ele argumentava, mais uma vez, que Marx estava a criticar Adam Smith, mas que, na verdade, havia muito mais em comum entre Smith e Marx do que entre muitos economistas neoclássicos de hoje.
Arrighi descreveu a ideia do que chamou de «socialismo smithiano», ou uma espécie de socialismo de mercado, muito semelhante ao modelo chinês atual, que inclui a propriedade pública dos setores estratégicos da economia, os monopólios naturais, a terra, os recursos, as telecomunicações, as infraestruturas e, mais importante ainda, as finanças; mas também uma economia de mercado interno robusta, com muita concorrência que reduz as margens de lucro.
Porque, como você apontou, os economistas políticos clássicos originais, como Smith, reconheceram que, se você tem concorrência perfeita, os lucros vão para zero. E, na verdade, os capitalistas são incentivados de várias maneiras a monopolizar as suas respectivas indústrias, para que possam maximizar as suas margens de lucro.
Hoje, vemos isso expresso de forma bastante aberta por pessoas como Peter Thiel, que é um grande apoiante de Donald Trump.
Peter Thiel é um multimilionário do Vale do Silício, um grande investidor de capital de risco.
Ele também empregou o atual vice-presidente dos EUA, JD Vance.
Peter Thiel, durante anos, defendeu os monopólios. Ele publicou um artigo no Wall Street Journal intitulado “Competition Is for Losers” (A concorrência é para perdedores), no qual lamentava o facto de que, se houver muita concorrência, as margens de lucro caem para zero. Ele disse que é por isso que todos os capitalistas querem um monopólio e argumentou que isso é uma coisa boa.
Por outro lado, se olharmos para a economia de mercado socialista da China hoje, vemos que todos esses capitalistas estão envolvidos numa luta sangrenta. Estão todos a lutar entre si até à morte nesta competição feroz.
As margens de lucro estão basicamente a cair para zero na China, enquanto nos EUA os lucros das empresas estão no seu nível mais alto de sempre — e a parte do rendimento que cabe aos trabalhadores está a cair cada vez mais, à medida que os lucros das empresas atingem níveis sem precedentes.
Portanto, para mim, isto parece ser a comprovação empírica exatamente do que está a argumentar, de que, quando se tem este sistema monopolizado, como nos EUA, se tem lucros muito elevados.
Quando se tem este sistema na China, que garante a concorrência e minimiza os monopólios, se tem lucros muito baixos.
E é claro qual dos sistemas está realmente a proporcionar um melhor nível de vida ao seu povo.
MICHAEL HUDSON: Bem, o argumento principal de Arrighi está correto, mas o título que ele deu ao livro, Adam Smith em Pequim, é muito infeliz.
O que realmente aconteceu foi que, no final da década de 1970, os chineses decidiram que não queriam que o seu tipo de socialismo fosse o mesmo que o stalinismo da Rússia. Inicialmente, perguntaram-me se eu queria ir para este instituto em Xangai, que recebia pessoas da escola de Chicago, Milton Friedman e os seus colegas. Eu disse: «Excelente, isso parece ótimo».
Isso foi por volta de 1979. E eu disse: «Sabe, provavelmente ajuda o facto de eu ser marxista. Cresci numa família marxista». E eles responderam: «Oh, meu, é melhor não ires. Eles não querem nenhum sinal de marxismo».
Bem, o que aconteceu foi que Milton Friedman foi lá e convenceu-os a deixar cem flores desabrocharem. Ele disse: «Não podem deixar o Estado planear tudo. Têm de deixar espaço para a inovação acontecer».
Foi o que aconteceu na Grã-Bretanha e na Alemanha.
BEN NORTON: Desculpa interromper, Michael. Tens toda a razão quando dizes que na China eles tinham essa ideia de deixar cem flores desabrocharem. E havia muito pragmatismo e experimentação.
Mas, especificamente no que diz respeito a Milton Friedman, isso é frequentemente mal interpretado. E David Harvey causou muitos danos com essa ideia falsa de que a China adotou o neoliberalismo e ouviu Milton Friedman.
Na verdade, isso está muito bem descrito no livro How China Escaped Shock Therapy, de Isabella Weber. Ela analisa as evidências arquivadas da China e mostra como, sim, você está certo ao dizer que Friedman foi, junto com muitos outros consultores económicos de todo o mundo, porque a liderança chinesa, liderada por Deng Xiaoping na época, queria ouvir muitas opiniões diferentes. Então, Milton Friedman foi apenas um entre milhares de economistas diferentes que foram convidados.
Mas, na verdade, no seu livro, Isabella Weber mostrou que eles ignoraram em grande parte o que Milton Friedman recomendou e, em vez disso, ouviram os conselhos de outros economistas que não eram neoliberais extremos como Friedman.
Assim, por exemplo, na questão da liberalização dos preços, Friedman apelou a um «big bang»; ele queria a liberalização imediata de todos os preços.
Weber mostra no seu livro como, na verdade, o governo chinês adotou uma abordagem incrementalista e gradualista, e não adotou a teoria do «big bang»; não adotou a abordagem de Friedman.
MICHAEL HUDSON: Tem toda a razão. Apenas o citei porque é o mais conhecido. E, claro, é um extremista tal que qualquer pessoa realista perceberia que é quase um louco.
O que a China fez e que as outras nações, as ocidentais, não fizeram foi completar a revolução capitalista industrial, mantendo os bancos e a criação de dinheiro no domínio público.
Assim, na China, é o Banco Popular da China que cria dinheiro e determina quem vai receber o crédito e em que condições.
Não é o caso no Ocidente. No Ocidente, são os bancos comerciais que determinam quem vai receber o dinheiro e para quem criar crédito.
Tudo o que lhes interessa é obter o ganho mais rápido possível. E o ganho mais rápido é possível emprestando dinheiro a um investidor agressivo, para que este adquira uma empresa, essencialmente dividindo-a em partes, vendendo os seus imóveis e arrendando-os de volta, utilizando o preço de venda como um dividendo especial.
As empresas pedem empréstimos até para comprar as suas próprias ações. Pedem empréstimos a taxas baixas sob flexibilização quantitativa e compram ações que rendem uma taxa mais alta.
Os bancos ocidentais dedicam-se a empréstimos improdutivos e a China concentra-se em empréstimos produtivos.
No entanto, a única coisa que a China não faz é o que Adam Smith mais recomendava. Ele dizia que é preciso evitar a renda da terra. A renda da terra é a fonte pública natural de receita tributária. É a base tributária natural, não os impostos sobre os salários do trabalho ou os lucros industriais, mas a terra.
Bem, Marx dedicou o primeiro volume de O Capital a falar sobre o que acabámos de mencionar: como é que um capitalista obtém o seu lucro de forma produtiva? Empregando mão-de-obra para produzir um excedente, para produzir lucro, a mais-valia.
Foi assim que Marx explicou, bem, o que é a teoria do valor-trabalho? Estamos a referir-nos ao preço que a mão-de-obra recebe pelo seu salário ou ao preço a que o produto do trabalho é vendido. Há um excedente acima do valor. Marx não chamou esse excedente de renda económica; ele disse que ainda é valor, mas é lucro, não renda.
Para entender isso, é preciso entender todo o corpo económico da discussão económica dos cem anos que antecederam Marx, desde Adam Smith e Ricardo, Malthus, Mill, tudo isso. Isso é o que não é ensinado aqui.
Depois de Marx dizer: «Bem, eis o que estou a acrescentar à teoria clássica do valor», ele passou os volumes dois e três de O Capital a discutir a renda e os retornos financeiros. E ele basicamente escreveu o que costumava ser chamado de volume quatro, que ele originalmente pretendia que fosse o primeiro volume de O Capital, nas suas teorias da mais-valia, que foi realmente a primeira história da teoria económica publicada no Ocidente.
Marx, nas suas teorias da mais-valia, discutiu todo o desenvolvimento do pensamento económico sobre valor, preço e teoria da renda, desde William Petty até Davenant e os fisiocratas, e todos os economistas menores, cujos nomes provavelmente são desconhecidos para a maioria do seu público.
Bem, falei com chineses pois fui professor de economia na Universidade de Pequim, na Escola de Estudos Marxistas, então estou bastante familiarizado com o que eles ensinavam.
Fui convidado para a primeira conferência marxista internacional e disse que, para compreender o marxismo, é preciso ler os volumes dois e três de O Capital, bem como as teorias da mais-valia. Bem, isso não foi muito bem recebido, porque eu estava a focar-me na renda económica.
Eu disse que estamos a assistir a um aumento dos preços dos imóveis. E o problema é a relação entre o governo central da China e as localidades. Parte da filosofia deles, de deixar cem flores desabrochar, é deixar cada aldeia e cidade desenvolver a sua própria organização e ver o que funciona melhor.
Bem, um denominador comum nas localidades chinesas é que elas financiam os seus gastos públicos vendendo ou arrendando terrenos a promotores imobiliários. E os promotores imobiliários compram esses terrenos e constroem habitações. Com o tempo, essas habitações são vendidas a preços cada vez mais altos.
Este aumento dos preços das habitações, ou dos preços dos imóveis comerciais, é, na verdade, um aumento da renda da terra. Era ao aumento dos preços que John Stuart Mill se referia quando dizia que os proprietários lucram enquanto dormem. Ele queria dizer que os proprietários ganham o que hoje se chama de ganhos de capital, que são, na verdade, ganhos de valorização da renda, enquanto dormem.
Bem, a China não abordou especificamente este problema da renda que está na base das tensões nas finanças nacionais e locais, que levaram ao colapso imobiliário devido à construção excessiva.
Bem, na segunda conferência marxista, David Harvey esteve presente. Eu fiz um dos discursos especiais na primeira conferência. David Harvey fez o discurso principal correspondente na segunda conferência, porque os seus livros venderam muito bem na China.
E Harvey disse que tudo o que é preciso fazer é o que Michael Hudson disse: é preciso ler os volumes dois e três de O Capital para obter uma base marxista completa.
Com Adam Smith e a economia clássica, tudo é um sistema em evolução que explica por que a Europa se desenvolveu e o resto do mundo não — com exceção dos Estados Unidos, que era a outra nação industrial protecionista, que consequentemente se tornou uma nação credora.
Bem, David Harvey não recebeu uma resposta mais positiva do que a que eu recebi. E há uma hesitação na China em estudar os volumes dois e três de O Capital, assim como nos Estados Unidos não há discussão sobre economia clássica; há muito pouca.
O que a China fez, de certa forma, pode-se dizer que foi reinventar a roda espontaneamente, apenas pela lógica interna do desenvolvimento económico.
A China replicou as políticas da Grã-Bretanha, França, Alemanha e Estados Unidos, e o próprio capitalismo industrial.
Replicou-as acima de tudo impedindo monopólios e impedindo que o setor bancário se tornasse o que se tornou na América, a mãe dos trusts, criando monopólios e financiando e fazendo lobby pela criação de monopólios — o que temos sob o regime de Donald Trump até agora nos Estados Unidos.
Sob Trump, no último semestre, ele aboliu quase toda a implementação da legislação antimonopólio dos Estados Unidos.
Bem, a China fez quase tudo para impedir a renda rentista, a renda econômica, exceto a renda da terra, e é por isso que tantos proprietários ausentes de imóveis se desenvolveram na China, comprando imóveis para arrendá-los como senhorios.
Foi isso que levou o presidente Xi a dizer que a habitação deve ser para viver, não deve ser um veículo de investimento.
Na medida em que a terra é um veículo de investimento, é devido à renda da terra que não está a ser cobrada como base tributária.
Bem, a China dirá: «Bem, nós realmente não precisamos de uma base tributária, porque podemos criar a nossa própria renda. Não precisamos de pedir empréstimos a uma classe financeira, porque quando houve uma revolução, em 1945-49, livrámo-nos da classe dos proprietários; livrámo-nos da classe financeira.
Assim, o governo teve de sobreviver criando o seu próprio dinheiro, tal como os Estados Unidos criaram os greenbacks durante a Guerra Civil, por exemplo; ou as colónias americanas criaram a sua própria moeda.
Isto é universal. A China apenas seguiu o caminho lógico de menor resistência, sem qualquer oposição de um interesse rentista que dizia: «Não, não, têm de ganhar dinheiro da forma mais fácil, através da renda económica – e não através da industrialização, através do investimento».
Essa foi realmente a vantagem da China. Mas não seguiu a ênfase número um de Adam Smith na renda da terra.
BEN NORTON: Mais uma vez, Michael, levantou tantos pontos interessantes. É difícil saber a qual responder exatamente.
Quero levantar esta ideia interessante que vimos tornar-se uma espécie de tropo muito popular nas redes sociais hoje em dia, no TikTok e no Twitter sobre finanças, que é a ideia de «rendimento passivo».
Tenho a certeza de que já viu isso. E o que é realmente engraçado é que muitas vezes citou esta frase muito importante do economista político do século XIX John Stuart Mill, que disse:
«Os proprietários enriquecem enquanto dormem, sem trabalhar, sem arriscar, sem economizar. O aumento do valor da terra, resultante dos esforços de toda uma comunidade, deve pertencer à comunidade e não ao indivíduo que possa deter o título de propriedade».
Agora, quando vemos a citação completa, fica claro que ele está a dizer que esses proprietários não deveriam receber essa renda que obtêm, essa extração de renda simplesmente por possuírem e monopolizarem essa terra.
Mas o que é hilariante, de uma forma um pouco sádica, muito triste, é que se procurarmos a citação «Os proprietários enriquecem enquanto dormem», de John Stuart Mill, encontramos muitas publicações nas redes sociais de empresas imobiliárias, diferentes agentes imobiliários a citar isso e a dizer ser por isso que devemos comprar uma casa e tornar-nos proprietários.
Especialmente para os mais jovens, existe este grande tropo da «renda passiva». Existem milhões de vídeos nas redes sociais de pessoas a tentar ensinar como se pode ganhar renda passiva tornando-se proprietário.
Na economia dos EUA, hoje em dia, muito gira em torno desta ideia de todos tentarem tornar-se seus próprios proprietários, para não terem de trabalhar, e isso é visto como algo positivo. Mas, obviamente, trata-se de algo extremamente destrutivo para a sociedade e para a economia.
É também um subproduto, uma consequência do facto de a economia ter sido completamente financeirizada e as pessoas sentirem que não têm alternativas económicas, por isso querem todas tornar-se proprietárias.
MICHAEL HUDSON: Bem, é isso que se ensina nas escolas de gestão. É assim que se ganha dinheiro. É isso que se ensina nos cursos de economia.
Então, imagine se os países do Sul Global enviassem os seus estudantes para os Estados Unidos — muitas vezes os estudantes das famílias mais ricas, que podem pagar os US$50 000 a US$80 000 por ano que custa uma universidade de prestígio nos EUA — você pode imaginar o que acontece quando eles voltam para o seu país.
Não lhes ensinam como criar uma economia sem rendas, mas obtém-se uma economia que oferece um almoço grátis — rendimento sem trabalhar, uma economia do almoço grátis.
Milton Friedman disse que «não existe almoço grátis», mas o almoço grátis é a essência do capitalismo financeiro. Não era isso que caracterizava o capitalismo industrial.
Mas transformámo-nos numa economia de almoço grátis, sem que o currículo académico tenha tomado nota disso e sem que o quadro estatístico oficial dos economistas faça uma distinção entre o PIB real, o custo real do setor produtivo, e o PIB fictício, a renda económica.
Bem, o que isto significa é que, suponha que está a comparar o PIB da China com o PIB dos EUA. Isso é enganador. É claro que mostra a China na liderança, mas a liderança é, na verdade, muito mais rápida do que as estatísticas mostram.
Porque se você disser: bem, qual é a comparação entre o PIB real dos Estados Unidos e o PIB real da China, em termos do que é realmente produzido, a China está muito à frente, porque não tem o PIB fictício que os Estados Unidos e as economias ocidentais têm.
O único elemento fictício é o aumento dos preços dos imóveis, que é um aumento no preço, não no valor. E para fazer isso, é preciso ter a distinção clássica entre valor, preço e renda econômica.
Essa distinção simples é muito fácil de dizer em palavras, mas, geração após geração, houve debates para refinar o que isso significava, refinar o conceito.
Qual é o custo necessário para a produção? O que é um custo desnecessário para a produção? O que é valor e o que é preço acima do valor? Tudo isso levou cem anos para se desenvolver.
E depois de se desenvolver, no final do século XIX, como eu disse, os rentistas reagiram e introduziram um século de economia sem sentido, a Escola de Chicago, a economia do «mercado livre» que se tornou um mercado livre para os rentistas, não para o resto da economia.
BEN NORTON: Michael, acho que essa é a nota perfeita para encerrar a nossa discussão.
Esta foi a segunda parte da minha entrevista com o economista Michael Hudson. Esta discussão em duas partes é sobre o artigo de Michael intitulado How the Global Majority can free itself from US financial colonialism(Como a maioria global pode libertar-se do colonialismo financeiro dos EUA).
Na primeira parte desta entrevista, Michael discute o desenvolvimento deste sistema que ele descreve como “colonialismo financeiro centrado nos EUA”, como se desenvolveu, quais instituições compõem este sistema e como os países da maioria global podem desenvolver alternativas a este sistema.
Dito isto, Michael, alguma última reflexão que queira acrescentar?
MICHAEL HUDSON: Não, já disse tudo.
BEN NORTON: Muito bem, obrigado por participar, Michael.
10/Agosto/2025
Vídeo desta entrevista:
https://youtu.be/qJd0d7Uda2M
Michael Hudson - Economista.
Alguns dos seus livros podem ser descarregados aqui.
O original encontra-se em https://michael-hudson.com/2025/08/americas-free-lunch-economy
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