Gilberto Felisberto Vasconcellos
Gilberto Felisberto Vasconcellos
Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo pela Universidade de São Paulo (USP) com doutorado em Ciências Sociais.

Luís Inácio Lula ou radicaliza a favor do povo ou cai sem cair

A palavra “esquerda” deixou de ser identificada à soberania nacional e à luta de classes.

Publicado em 12/07/2023
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A tragédia é irreparável, de acordo com George Steiner em A morte da Tragédia. Jair Bolsonaro é menos tragédia que terror, um terror contínuo e inacabado porque reflexo da ontologia social oligárquica e multinacional. Os seus adeptos, correligionários e militantes, são homens na faixa dos 40 anos, homens mais que mulheres, e não só de classe média.

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O Bolsonarismo é a extrema direita de massa no período vídeo financeiro do capitalismo. Julgo incorreta a abordagem que o focaliza sob o ângulo do fortuito e do acaso, assim como o critério do justo e do injusto não explica sua razão de ser. Ainda que involuntariamente, os magistrados se colocaram em frente ao espelho com o drama da Dilma e a prisão de Lula. Por espelho designo a metáfora pela qual os magistrados estão sendo julgados pela história.

A vitória eleitoral de Lula interrompeu momentaneamente a sedução bolsonara, mas isso não é uma redenção histórica quanto ao significado da derrubada em 1964 de João Goulart, considerada por Glauber Rocha como “tragédia” em sua peça de teatro escrita na década de 70 que colocou a seguinte questão: o país trágico mas carente de tragédia como expressão ou gênero literário. Não se pergunta nunca o que isso tem a ver com a luta de classes entre senhores e escravos e burguesia e proletariado.

A esquerda lamenta a falta de densidade histórica da noção de “classe”, como foi posta por Oswald de Andrade em 1928 no prefácio do romance Serafim Ponte Grande: socialmente derrelitos porque o contrário do burguês no Brasil era o boêmio, não o proletário. Esse juízo é datado, dois anos antes da revolução de 30, coincidindo com a ascensão de Stálin e os seus funcionários na União Soviética. Para a direita a diluição da polaridade entre burguês e proletário é fonte de regozijo, pois demonstra que não temos por aqui luta de classes, ou que esta é exótica e importada.

O trabalhismo, indo em direção oposta ao clericalismo católico, defende o suicídio de Getúlio Vargas como morte heroica e não como desistência ou gesto de fraqueza. Há uma acrobacia semântica na maneira católica de condenar o suicídio de Getúlio Vargas, ora como expressão do estatismo nacionalista, ora como um ímpio bruto sem medo de ir para o inferno. Esse suicídio cometido no poder marca toda a história posterior. O que é o bilhetinho de Jânio Quadros em Brasília? O que é o programa de auditório do caçador de marajá com o "acabei mãe"? O que é o tombo da bicicleta fiscal de Dilma?

O sangue, signo signatarum da Carta Testamento, separa o que é dramático na história do que é bufonaria e comédia. A lenda contraditória que emana desse suicídio permanece na história uma vez que Leonel Brizola não logrou chegar ao poder para remir o tiro Colt 32 que foi dado no Palácio do Catete em agosto em 1954.

Dou aqui um salto aos tempos de Jair Bolsonaro, centrando o enfoque no clima ideológico que o elegeu, digamos, o desejo expresso nas urnas em 2018. Enigma decerto, mas que expressa um descenso civilizatório anti-povo e anti-nação. Esse irracionalismo ainda não foi explicado do ponto de vista histórico.

Tomo como ponto de partida um sentimento verbalizado por várias lideranças empresariais e aplaudido pela pequena burguesia. Refiro-me ao sentimento de orgulho e autoestima por ser de “direita”. Ouve-se repetidas vezes a frase: é com muito orgulho que eu sou de direita, tal qual vangloria-se o torcedor do Flamengo no boteco. Eu sou de direita com muito orgulho. A semântica positiva até então não era assumida; ao contrário, o homem de direita nunca abria o jogo que era de direita. Lembro que dos golpistas em 1964, não se ouvia deles — um Jarbas Passarinho, um Roberto Campos, um Sílvio Frota — a declaração narcísica a respeito de sua auto-filiação direitista. Eu sou de direita. Jamais.

O escritor Gustav Flaubert que não curtiu a Comuna de Paris de 1871 dizia que a palavra “burguês” era sinônimo de estupidez, baixo nível mental. Os próceres de 1964, não obstante alguns defenderem a tortura como um necessário dispositivo político, nunca vinham a público confessar que eram gente de direita.

Da década de 90 em diante houve uma mutação psicológica a reverberar alguma coisa na estrutura econômica, sobretudo com a financeirização da acumulação de capital, conforme os economistas Rosa Maria Marques e Paulo Nakatanj sobre o legado bolsonaro de destruição publicado na Monthly Rewiew em maio de 2023.

A falta de vergonha em confessar-se de direita se deu porque frações da burguesia como classe dominante entraram de corpo e alma na finaceirização imperialista do capital sob a égide da independência do Banco Central aprovada em 2016. As porteiras se abriram ao capital apropriando-se do Fundo de Amparo do trabalhador e do Fundo de Garantia por tempo de serviço.

Em 1995 a farra financeira da burguesia paulistocêntrica acabou com a distinção constitucional entre capital estrangeiro e nacional. Essa indistinção do capital unifica Pedro Malan e Paulo Guedes, não somente quanto à entrega da energia da Petrobrás aos acionistas estrangeiros, mas também quanto à internacionalização do território. A palavra “esquerda” deixou de ser identificada à soberania nacional e à luta de classes. Baldados foram os esforços dos meus amigos Bautista Vidal e Marcelo Guimarães em convencer Lula e Dilma que o imperialismo estava tomando conta do sol e da água. A estrangerização multinacional completa do Proalcool hoje leva o nome de Raizen. Repita, vagabundo leitor, Raizen, Raizen, Raizen...

Se a esquerda é confusa em mostrar quem são os inimigos do povo, em contrapartida a direita dá o passo ousado de tornar-se popular, a extrema direita não olvida a diferença entre patrão e trabalhador. O mais estarrecedor de 2013 a 2018 foi a direita apropriar-se dos símbolos pátrios diante de uma esquerda psicoleucêmica com medo de enfrentar o imperialismo. Daí medrar a esquerda da conciliação “peace and love” com a cínica estratégia de ganhar eleição e manter a tal da governabilidade, ou seja, aceitando a condição perpétua da dependência e do subdesenvolvimento.

Eu comecei esse artigo pensando na fraqueza como condição do homem colonial que vive com os olhos vedados sem refletir sobre a tragédia. Antes de mim Glauber Rocha e Leonel Brizola chamaram a atenção para a nossa tibieza colonial e a psicologia da desistência compulsiva.

A fraqueza não é necessariamente muscular, assim como a luta de classes não é necessariamente violência belicosa. Segundo os filmes de Glauber Rocha, fraqueza é resignar-se com o destino fatalista da miséria. Embora apoiando Lula quando este estava com a faca na garganta, Leonel Brizola depois ficou indignado ao ver o doutor Henrique Meireles desembarcando na chefia do Banco Central. Aí rompeu com o PT declarou que Lula era um líder fraco do ponto de vista ideológico. Depois disso muita água rolou debaixo da ponte. Lula pegou cadeia um tempão e conseguiu derrotar Jair Bolsonaro na eleição de 2022. Façanha admirável sem dúvida, mas menos façanhuda foi a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, como se diz a respeito da vitória popular de Hitler que deixou os intelectuais com os cabelos em pé. Napoleão que despertou a admiração do filósofo Hegel achava que o trono é o homem.

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