Por que fui, sou e nunca deixarei de ser admirador de Leonel Brizola
Sádico, cínico, Golbery no Palácio dava risadas de contentamento quando Leonel Brizola chorou na televisão ao perder a sigla PTB
Zelar pela memória de Leonel Brizola caberia ao PDT, mas este partido não forma discípulos e exegetas de seu pensamento e de sua ação. A militância rarefeita ignora a razão brizolista na história, e disso resulta o progressivo esquecimento de seu nome. Difícil é reconhecer que sem respaldo partidário o seu legado não se dissipe com o tempo. Admite-se outra hipótese tendo em mira o que aconteceu com Getúlio Vargas que, não obstante o seu partido (PTB) ter desaparecido e se desfigurado a partir dos anos 70, o povão ainda não o esqueceu de todo.
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O detalhe aqui merece relevo para além do nome na retentiva popular cantado por um notável samba de autoria do professor Paulo Vanzolini: morre o homem fica a fama. Esse é o drama desde a Carta Testamento de 1954, na qual o suicídio imprime o nome na história por onde transcorre a eternidade.
A pá de cá do esquecimento não é apenas vertida na sepultura; trata-se de uma estratégia de classe e dominação, uma espécie de mais valia ideológica póstuma para usar a expressão do poeta venezuelano Ludovico Silva.
Getúlio Vargas chegou ao poder supremo da nação e materializou algumas instituições, o que não sucedeu a seu discípulo exilado durante décadas pela burguesia.
Leonel Brizola ficou circunscrito à esfera regional, governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro. O general Golbery do Couto e Silva, sintonizado com o departamento linguístico do Pentágono, cortou o partido político com o qual nascera politicamente em Porto Alegre durante o fim da Segunda Guerra Mundial.
A sua linguagem de caráter oral é um exemplo de assimilação do marxismo para o léxico local, ao invés do mimetismo linguístico das esquerdas reproduzindo a tradição mal feita da Europa e Estados Unidos.
Nunca se pergunta se a carência de persuasão de massa do pensamento marxista se deve à dicção e ao modo como é expresso os conceitos em sua relação entre significante e significado.
O povo entendia e amava a linguagem brizolista, e esta não teve maior alcance persuasivo traduzida em ação por causa de fatores extra-linguisticos vinculados ao monopólio dos meios de comunicação.
Não bastasse ter sido órfão de pai, Leonel Brizola vivenciou a repressão da orfandade política, e teve de refazer o fio da história interrompido, a principal cabeça cortado pelo golpe de 64. Ninguém na história recente do país, em face da reestruturação partidária e de novos partidos como o dos trabalhadores, se viu coagido a responder à questão decisiva da política: que fazer? Não é preciso da inteligência revolucionária de um Lenin para saber da extrema dificuldade que é criar um partido de feitio popular. O ano de 1980 significou um golpe dentro do golpe de 64: o passado pré 45 lhe foi cancelado para inviabilizar o presente com vista ao futuro. Nada mais diabólico.
Depois do desterro Leonel Brizola volta ao país mas volta combalido, atomizado, uma voz sem partido como reverberação de massa. Tirando-lhe o PTB getuliano, o objetivo do imperialismo era eliminar as condições gregárias de sua sobrevivência política, pois não teria chances objetivas de reerguer-se entre os trabalhadores das empresas multinacionais que estavam desinformados sobre o que foi o período pré-64. Novas lideranças que não viveram o exílio estavam emergindo, principalmente no setor automobilístico da São Paulo industrial, a fonte do capital videofinanceiro. A metáfora que lhe acudiu para expressar o recalque da continuidade foi o da tesoura na história do trabalho. Isso foi fatal para a existência de uma classe operária bifronte e artificialmente fomentada com o antes e o depois de 1964.
O antes que o golpe tinha por objeto suprimir era a velharia getuliana e brizolista que não tinha mais nada a dizer diante de um novo padrão de acumulação de capital, para usar a linguagem que se tornou corriqueira nas teses dos jovens sociólogos. O depois de 64 se constituiu com a liderança operária representada por Luis Inácio Lula, a estrela badalada em São Paulo, tendo ojeriza burguesa pelo passado.
É um infortúnio histórico a entropia semântica na consciência da classe operária em um país com a seriação interrompida das ideias, como informou Silvio Romero, o historiador de uma literatura feita de saltos e abduções. É isso o que se quer aludir quando se diz que carecemos de história, ou que padecemos de uma amnésia crônica.
A militância brizolista no Rio de Janeiro comentava que o general Golbery ao privilegiar Ivete Vargas no PTB estava ensejando o surgimento de um Lula esquizofrenizado e apartado de Leonel Brizola. Longe de mim considerar esse general leviano um artífice dos novos partidos na década de 70. Sua mediocridade intelectual, plagiário desde os anos 50, foi denunciada por Vivian Trias no Uruguai junto com Paulo Schilling. Sua geopolítica é a submissão ao imperialismo norte-americano. Relativizaremos a formulação hiperbólica de que Lula seria uma criação do general das multinacionais, todavia é indiscutível que foi do interesse do poder militar golpista que houvesse a cisão entre os líderes do trabalho.
Sádico, cínico, Golbery no Palácio dava risadas de contentamento quando Leonel Brizola chorou na televisão ao perder a sigla PTB e que acabou ficando nas mãos do miliciano Roberto Jefferson.
Leonel Brizola fracassou em seu objetivo de alcançar o poder para revolucionar a sociedade. O julgamento histórico desse fracasso é deveras complicado porque envolve simultaneamente o polo vencedor com Luiz Inácio Lula, o qual surgiu na vida política depois do golpe de Estado em 1964 e da telenovela em 1965.
Leonel Brizola mesmo antes de seu exílio era persona não grata do poder multinacional norte-americano e temido como comunista pelos militares. Lula nunca teve essa pecha, nem por ocasião da greve no ABC, enfim, um líder sindical progressista burguês e sem identificação com o marxismo e o socialismo. Nunca foi considerado subversivo pelo sistema midiático e clerical, enfim, um líder palatável sob o critério da ordem, para falar com Florestan Fernandes, que foi correligionário de Lula na razão inversa da hostilidade a Leonel Brizola tido como um “machão” da política, conforme foi dito pelo sociólogo durante a campanha eleitoral de 1989. A sociologia paulista estava mais para o anti-getuliano Ulisses Guimarães que não desejava que Jango e Brizola voltassem do exílio. Ulisses Guimarães era o homem do imperialismo que dentro do PMDB foi o padrinho da coruja tucana.
A impressão que se tem, observando a luta de classes do ponto de vista internacional, é que a cada dia que passa o poder tem de ser anti-brizolista. De José Sarney a Luís Inácio Lula. Daqui a pouco completaremos um século no qual o país permanece anti-brizolista. É por isso que não faz sentido perguntar se Lula foi mais dotado de inteligência política do que Leonel Brizola; todavia entre um e outro se interpõe a regressão histórica representada por Jair Bolsonaro que aprofundou o reacionarismo do golpe de 64. Deixemos de lado o caráter inesperado do surgimento do ex-capitão a fim de sublinhar que Lula em 2022 impediu sua reeleição, o que sem dúvida representa um feito extraordinário, mas isso não basta para o país e o proletariado.
É imperiosa a distinção entre o Bolsonaro de carne e osso e o bolsonarismo, não como doutrina e sim como comportamento social reproduzido no cotidiano, violência, barulho, surdez estrutural, velocidade de automóvel por 4, descenso da capacidade linguística, falta de higiene, machismo, matricídio, feminicídio, indumentária, pop tatuada. Isso tudo constitui a ontologia bolsonara que não irá desaparecer depois de Jair Bolsonaro. Continua a cada dia a expansão da boçalidade em massa. O capital videofinanceiro amplia a esfera da indústria cultural quanto mais a socialização pela letra é reduzida nas camadas médias e baixas da população. Fato é que sem repertório linguístico é nulo o entendimento das coisas sob o influxo do uatizápi, da telenovela e do programa de auditório.
A decadência do alfabeto, contra a qual se insurgiram Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, é a causa da sedução bolsonara. O espectro acústico bolsonarista tomou vulto em 1989 no que Leonel Brizola perdeu as eleições para o venal caçador de marajás. Em Brasília morcegava no meio à deputança um tipo que ninguém prestou atenção; na verdade não havia motivo algum para por reparo em Jair Bolsonaro.
Escrevo agora o verbo morcegar pensando qual apelido lhe daria Leonel Brizola, possivelmente o de “morcego” devido à parecença física. Segundo a tradição popular, o morcego agoureiro descende de ratos velhos.
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