
Do Consenso de Washington ao mundo multipolar: o que está em jogo para o Brasil
Guerras, desigualdade extrema e financeirização são sinais claros do esgotamento da ordem unipolar
Enquanto a elite bilionária global concentrou ainda mais riqueza, ampliando sua fortuna em US$ 2 trilhões em apenas um ano, o Brasil segue sem recuperar o controle de setores estratégicos entregues nas privatizações recentes. A nova ordem mundial pode ser uma chance histórica de romper esse ciclo de dependência.
O mundo vive um momento de inflexão histórica. A escalada de guerras, a concentração de riqueza e a fragilidade do sistema financeiro revelam os sinais de esgotamento de um ciclo hegemônico. Nesse contexto, os Estados Unidos — antes indiscutíveis na condução da ordem internacional — mostram-se cada vez mais ansiosos e agressivos em sua tentativa de preservar privilégios.
A postura do governo Trump ilustra esse impasse. Em seu segundo mandato, iniciado em janeiro de 2025, adotou tarifas inéditas, atingindo mais de cem países com taxas que variaram entre 10% e 125%, e, poucos meses depois, ordenou ataques a três instalações nucleares no Irã. A ofensiva militar e comercial expõe não apenas a instabilidade de sua política externa, mas a própria fragilidade do modelo de dominação norte-americano.
Como destacou Thomas Piketty em coluna publicada no Le Monde em julho de 2025, tais medidas “não fazem mais do que acelerar o processo de desdolarização no cenário global” (PIKETTY, 2025). Para ele, a agressividade dos EUA “reflete a ansiedade de um país que já não domina mais com a mesma segurança a economia mundial, evidenciando uma tentativa desesperada de manter privilégios que estão rapidamente se esvaindo.”
Crescimento de conflitos armados
O aumento dos conflitos armados é outro sintoma do desgaste da ordem internacional. Em 2024, o planeta registrou o maior número de guerras desde 1946, com disputas simultâneas em 36 países. Segundo o Instituto de Pesquisas de Paz de Oslo (PRIO, 2024), havia 61 conflitos ativos, incluindo confrontos de grande escala, como a invasão da Rússia à Ucrânia e os bombardeios em Gaza. Esse quadro revela uma instabilidade crescente e sem precedentes desde o fim da Guerra Fria.
O nível de conflitos baseados no Estado tem flutuado ao longo do tempo. A Figura 1 mostra o número e o tipo de conflitos entre 1946 e 2024. A linha preta indica o número de mortes relacionadas a batalhas por ano.
Figura 1: Número de conflitos armados baseados no Estado por tipo de conflito, 1946-2024 (PRIO, 2024).
A dinâmica desses conflitos é complexa: aumentam não apenas os confrontos entre Estados, mas também as guerras não estatais — disputas entre grupos armados organizados fora do controle governamental — que proliferam em contextos de fragilidade estatal e exclusão social.
A Figura 2 apresenta uma visão geral global dos eventos de conflito baseados no Estado em 2024. Esses eventos estão fortemente concentrados na Ucrânia, em Israel, na Síria e em partes da África - especialmente em Mali, Burkina Faso e Níger. Além disso, vários eventos de conflito ocorreram na Rússia, especialmente na região do Cáucaso.
Figura 2: Eventos de conflito com base no Estado e países afetados por conflitos, 2024 (PRIO, 2024).
As guerras em regiões como Ucrânia, Gaza e Etiópia ilustram facetas dessa crise global. Elas não se reduzem a confrontos militares, mas expressam desequilíbrios econômicos e políticos que remetem ao paradigma hegemônico descrito por Piketty: um sistema em que o poder financeiro, concentrado e decadente, alimenta conflitos para preservar seus interesses.
Receba os destaques do dia por e-mail
Desigualdades globais
A desigualdade também expõe os limites de um sistema que se esgota. O capitalismo financeiro global aprofundou assimetrias em níveis extremos: em 2021, os 10% mais ricos detinham 52% da renda mundial, enquanto os 50% mais pobres recebiam apenas 8,5%. Em termos de riqueza, a distância era ainda maior: 76% contra pouco mais de 2%, como mostram as Figuras 3 e 4.
Durante a pandemia (2020–2022), enquanto a economia mundial estagnava, a elite bilionária aumentou sua fortuna em 14%. Em 2024, os 10% mais ricos seguiam controlando 52% da renda e 76% da riqueza global. Nesse mesmo período, os 0,001% mais ricos — a elite do topo do topo — concentraram ganhos extraordinários: somaram US$ 2 trilhões em apenas um ano, com crescimento de quase 16%. Esse ritmo esteve diretamente ligado ao poder crescente das big techs, que passaram a controlar fluxos de informação, infraestrutura digital e setores estratégicos como inteligência artificial (OXFAM, 2025).
Figura 3. Diferenças de renda no mundo.

Figura 4. Desigualdades globais de renda e de riqueza, 2021.
Esses dados reforçam que o problema não é apenas militar ou político, mas estrutural: a concentração de renda e riqueza alimenta crises sociais, econômicas e ambientais em todo o mundo.
A concentração de riqueza e o aumento dos conflitos não são fenômenos isolados, mas sinais do esgotamento de um ciclo hegemônico em declínio. No Brasil, esse quadro se expressa na continuidade de políticas orientadas pelo Consenso de Washington, em que as elites se alinharam ao capital internacional e mantiveram o país em um ciclo de dependência. Diante da transição para um contexto multipolar, torna-se necessário adotar novas percepções e diretrizes, capazes de romper com essa lógica e abrir caminhos para um projeto de desenvolvimento soberano.
O reflexo no Brasil
No Brasil, esses processos assumiram forma particular. A adesão ao Consenso de Washington, a subordinação das elites ao capital internacional e as privatizações em setores estratégicos mantiveram o país em um ciclo de dependência. O resultado foi a desindustrialização, a financeirização da economia e o enfraquecimento da capacidade do Estado de promover desenvolvimento soberano.
Privatizações e o papel do Estado
Nos últimos anos, diversas empresas estratégicas controladas pelo Estado foram submetidas a processos de venda ou passaram a adotar uma lógica empresarial de curto prazo. Essa lógica é marcada pela priorização do pagamento de dividendos em níveis recordes e pela redução drástica de investimentos produtivos.
Criadas para cumprir funções essenciais ao desenvolvimento nacional — como garantir o fornecimento de serviços e produtos estratégicos a preços compatíveis com a realidade social, gerar empregos e fomentar a reindustrialização — essas empresas vêm sendo crescentemente moldadas pelos interesses do mercado financeiro, em detrimento do interesse público.
Privatizações recentes, como a da Eletrobras, representam o estágio mais extremo dessa lógica. Ao transferir o controle de empresas-chave para investidores privados, retira-se do Estado qualquer poder efetivo de definir estratégias voltadas ao bem comum. Em setores vitais, como energia e infraestrutura, isso significa abrir mão de instrumentos fundamentais para reduzir desigualdades regionais, assegurar tarifas justas e planejar o desenvolvimento de forma soberana (AEPET, 2018).
Manter empresas estratégicas sob esse padrão de gestão significa aceitar que as decisões em setores vitais sejam orientadas exclusivamente pelo lucro imediato. Romper com esse modelo exige recolocar o interesse social e o desenvolvimento nacional no centro da gestão, resgatando o papel histórico dessas instituições como motores da soberania, da industrialização e da justiça social.
Nesse contexto, a reestatização de empresas privatizadas torna-se essencial para recuperar o controle público sobre áreas estratégicas e assegurar que seu funcionamento esteja alinhado às necessidades coletivas e aos objetivos de longo prazo do país. Essa crítica dialoga com análises publicadas pela AEPET em Privatizações e Estado mínimo (AEPET, 2017), que destacam como a venda de estatais fragiliza a capacidade de planejamento estratégico nacional.
Entre as empresas federais que passaram por processos de privatização nas últimas décadas, destacam-se a Vale, a Eletrobras, a BR Distribuidora e a Companhia Siderúrgica Nacional – CSN. Experiências como a venda da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) mostram como a alienação de ativos estratégicos resultou em prejuízos significativos e perda de capacidade de coordenação energética, conforme apontado em estudos da própria AEPET (2020).
Casos concretos ilustram os efeitos negativos das privatizações no setor de refino. Estudos (INEEP, 2022) apontam que, após a privatização da REMAN em 2022, em Manaus, a gasolina e o diesel passaram a custar até 25% mais caro em comparação aos produtos das refinarias ainda sob controle da Petrobrás.
O Observatório Social do Petróleo também registrou que a gasolina da REMAN ficou, em média, 6,5% mais cara (cerca de R$ 0,21 por litro) do que a das refinarias estatais (OSP, 2023). Além disso, em 2022, a refinaria operava com 67,2% da capacidade. No ano seguinte, caiu para 62,7%. Em 2024, já sob o Grupo Atem, despencou para 20,6%, queda de mais de 50 pontos percentuais.
Situação semelhante ocorreu com a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), na Bahia, vendida em 2021. Após a privatização, os combustíveis ali produzidos apresentaram preços consistentemente superiores aos das demais refinarias da Petrobras, chegando a estar entre os mais altos do país. Além disso, a Bahia perdeu capacidade de regulação local, ficando dependente de um monopólio privado regional, o que agravou a pressão inflacionária sobre consumidores e setores produtivos (INEEP, 2022).
Reindustrialização
A prioridade ao capital financeiro, em detrimento da indústria, precariza empregos e amplia desigualdades. Sem uma estratégia de reindustrialização, o Brasil permanece preso ao rentismo e à exportação de commodities, incapaz de sustentar um crescimento sólido e inclusivo. A redução contínua da base industrial nacional aprofunda a vulnerabilidade externa, aumentando a dependência de importações. Esse quadro acentua a exposição às flutuações cambiais e a choques internacionais de oferta e demanda, transmitindo pressões inflacionárias adicionais sobre os custos de produção e sobre os preços ao consumidor.
No Brasil, o capitalismo financeiro consolidou-se como prática dominante em um país continental cuja indústria se retrai progressivamente. O resultado é a precarização do trabalho e a degradação socioeconômica. Romper esse ciclo exige compreender os fatores estruturais que limitam o desenvolvimento — todos marcados pelo foco no lucro imediato em detrimento de investimentos de longo prazo, inovação e capacidade produtiva.
Austeridade fiscal e financeirização como entraves ao desenvolvimento
A combinação de teto de gastos, juros elevados e a destinação de grande parte da arrecadação ao pagamento da dívida pública evidencia um modelo de Estado mínimo voltado prioritariamente à estabilidade fiscal e à satisfação do mercado financeiro. Essa lógica restringe investimentos sociais e produtivos, inviabiliza projetos de infraestrutura e inovação e reforça a concentração de recursos no setor financeiro, em detrimento da economia real. O resultado é a perpetuação das desigualdades, a estagnação dos serviços públicos e a limitação estrutural da capacidade de o país definir um projeto soberano de desenvolvimento.
Educação e Soberania Nacional
Um projeto nacional de desenvolvimento precisa estar ancorado em uma educação pública gratuita e de alta qualidade, capaz de formar cidadãos críticos, conscientes de seus direitos e deveres, além de técnicos altamente qualificados e pesquisadores comprometidos com o avanço científico e tecnológico do país. Como alertava Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto” — ou seja, a manutenção de um sistema excludente interessa às elites que preferem um país dependente e desigual. Sem um sistema educacional robusto, o Brasil não apenas compromete sua capacidade de reindustrialização e autonomia tecnológica, mas também limita a construção de uma sociedade mais justa, democrática e soberana.
Considerações finais
A crise atual não é episódica: guerras, desigualdade extrema e financeirização são sinais claros do esgotamento da ordem unipolar. Desde o colonialismo até o Consenso de Washington, a hegemonia global se sustentou na exploração e na subordinação de países em desenvolvimento. Esse modelo está em declínio.
O Brasil, porém, permanece preso a esse ciclo. As elites nacionais se alinharam ao capital internacional, aceitaram privatizações em setores estratégicos e deixaram de reverter perdas históricas. Sem reestatização, reindustrialização e investimento em ciência e educação, o país seguirá como periferia dependente, mesmo em um mundo multipolar.
A transição em curso abre uma oportunidade rara: redefinir diretrizes, romper com o neoliberalismo e recolocar a soberania no centro da estratégia nacional. Cabe ao Brasil decidir se continuará como espectador ou se assumirá protagonismo na construção de uma ordem multipolar mais justa.
Portanto, guerras, desigualdades e crises econômicas não são fenômenos isolados, mas expressões de um ciclo hegemônico em declínio. O Brasil precisa recolocar o interesse público no centro de suas estratégias e assumir papel ativo na construção de uma ordem multipolar mais justa.
O caminho é claro:
- Romper com a lógica neoliberal e reverter a perda de soberania em setores estratégicos, garantindo à Petrobrás o papel central no planejamento energético do país.
- Investir em educação, ciência e tecnologia, articulando o fortalecimento da indústria nacional e a redução da dependência externa.
- Construir soberania real em um mundo multipolar.
Referências
AEPET. Privatização da Eletrobras. AEPET, 2018. Disponível em: https://aepet.org.br/artigo/privatizacao-da-eletrobras/. Acesso em: 25 ago. 2025.
AEPET. Privatizações e Estado mínimo. Associação dos Engenheiros da Petrobrás – AEPET, 2017. Disponível em: https://aepet.org.br/artigo/privatizacoes-e-estado-minimo/. Acesso em: 25 ago. 2025.
AEPET. NTS: Privatização lesiva e reestatização. AEPET/Disparada, 2020. Disponível em: https://disparada.com.br/nts-privatizacao-e-reestatizacao/. Acesso em: 25 ago. 2025.
INEEP – Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra. Impactos da venda da RLAM: preços e mercado regional de combustíveis. 2022. Disponível em: https://ineep.org.br/. Acesso em: 25 ago. 2025.
INEEP – Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra. O caso REMAN: da privatização ao fim do refino. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/06/23/refinaria-privatizada-reduz-producao-e-agrava-problema-do-preco-do-combustivel-no-norte/. Acesso em: 25 ago. 2025.
- Chancel, T. Piketty, E. Saez e G. Zucman, “World Inequality Report 2022, World Inequality Lab wir2022.wid.world,” 2022.
OSP – Observatório Social do Petróleo. Privatizada por Bolsonaro, refinaria do Amazonas vende gasolina mais cara do país. 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/02/23/privatizada-por-bolsonaro-refinaria-do-amazonas-vende-gasolina-mais-cara-do-pais/. Acesso em: 25 ago. 2025.
OXFAM. Takers not makers: the unjust poverty and unearned wealth of colonialism. Oxford: Oxfam International, 2025. Disponível em: https://www.oxfam.org/en/takers-not-makers-unjust-poverty-and-unearned-wealth-colonialism.
PIKETTY, Thomas. The US’s unprecedented financial fragility explains Trump’s aggressiveness. Le Monde, Paris, 12 jul. 2025. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/opinion/article/2025/07/12/thomas-piketty-the-us-s-unprecedented-financial-fragility-explains-trump-s-aggressiveness_6743298_23.html. Acesso em: 25 ago. 2025.
PRIO – Peace Research Institute of Oslo. Conflict Trends, 1946–2024. Oslo: PRIO, 2024.
Gostou do conteúdo?
Clique aqui para receber matérias e artigos da AEPET em primeira mão pelo Telegram.